003

2003

2014

 

 CARTA DO CONSELHO


Novo Comando

 

 

 

Esta edição da Por Sinal, a primeira sob o comando da nova direção do sindicato, eleita para o biênio 2017/2019, e também a primeira do décimo sexto ano de sua existência, encontra o país ainda mergulhado em grave crise institucional e fiscal.

O Congresso Nacional, de forma atabalhoada, procura conciliar a apreciação de projetos legislativos com a de denúncias de corrupção contra as mais altas autoridades do país, inclusive o próprio presidente da República, Michel Temer. Enquanto isso a economia, embora com a inflação controlada, não dá sinais de crescimento adequado às necessidades, lidando ainda com um déficit orçamentário para o ano de 2017 previsto em 159 bilhões de reais.

Escudado na Emenda Constitucional Nº 95/2017, que limi- ta o teto de gastos da União, o governo promove um verdadeiro desmonte do Estado, anunciando medidas restritivas aos servi- dores públicos que vão desde o adiamento de reajustes salariais previstos para 2018, já transformados em leis, para serem pagos pelo próximo governo que virá a partir de 2019, passando pelo aumento da contribuição previdenciária, pela restrição a novos concursos públicos para reposição dos quadros e pela restrutu- ração das carreiras que prevê a criação de um “carreirão” com salário inicial único de R$ 5 mil para cargos com exigência de nível superior e R$ 2,8 mil para os de nível médio.

Iniciamos com o presidente do Banco Central da Bolívia, Pablo Ramos Sánchez, uma série de entrevistas com ocupantes deste cargo em países da América do Sul, onde procuraremos traçar o novo cenário econômico descortinado em nosso continente a partir das experiências de políticas desenvolvidas em cada uma das nações.


A Previdência Social continua sendo tema dos mais importantes e buscamos neste número apresentar as atividades da Comissão Parlamentar de Inquérito da Previdência (CPIPREV), que se desenrola, já em fase final, no Congresso Nacional, com conclusões que diferem, em muito, das premissas do governo ao propor a sua reforma.

O relacionamento, sempre conturbado, entre o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) com os entes bancários privados, também faz parte de nossas considerações neste número, assim como as incertezas que cercam aquele que se intitula “principal instrumento do Governo Federal para o financiamento de longo prazo e investimento em todos os segmentos da economia brasileira”.

Nossos articulistas, Edil Batista Júnior e Antônio Augusto de Queiroz, o Toninho do Diap, trazem visões particulares sobre temas de relevância para o grave momento político, econômico e social que se nos apresenta.

O novo Conselho Editorial da Por Sinal, ciente de sua responsabilidade à frente desta publicação, que já ocupa lugar de destaque entre aquelas produzidas por entidades sindicais, traz como mensagem de seu Presidente, Jordan Alisson Pereira, que: “a Por Sinal manterá seu papel de ser a porta voz dos servidores do Banco Central nos grandes debates que afetam a sociedade brasileira, buscando influenciar democraticamente e de maneira apartidária o processo de definição de políticas públicas”.

Boa leitura.



 


SINDICATO NACIONAL DOS FUNCIONÁRIOS DO BANCO CENTRAL (SINAL)


CONSELHO NACIONAL BIÊNIO 2017/2019

 

Presidente
Jordan Alisson Pereira

Belém
Reginaldo Bentes dos Santos

Brasília
Rita Girão Guimarães
Josina Maria de Oliveira
Renner Augusto Carmo Mascarenhas
Vania Maria Monteiro Couto

Belo Horizonte
Maria de Fatima Siqueira

Curitiba
Enrikson Antonio Falabretti

Fortaleza
Francisco de Assis Tancredi Soares

Porto Alegre
Gustavo Diefenthaeler

Recife
José Milton Bezerra

Rio de Janeiro
Sergio da Luz Belsito
José Aloísio Guimarães Sanches
Márcio Silva de Araújo
Nehemias Monteiro Junior

Salvador
Manoel da Cunha Filho

São Paulo
Iso Sendacz
Eduardo Stalin Silva
Natalino Yoshimi Sakamuta


 

 

DIRETORIA EXECUTIVA NACIONAL BIÊNIO 2017/2019

 

Presidente
Jordan Alisson Pereira

Diretor Secretário
Renner Augusto Carmo Mascarenhas

Diretora Financeira
Ivonil Guimarães Dias de Carvalho

Diretor Jurídico
Sergio da Luz Belsito

Diretor de Comunicação
Paulo Lino Gonçalves

Diretor de Assuntos Previdenciários
Márcio Silva de Araújo

Diretor de Relações Externas
Epitácio da Silva Ribeiro

 

Diretor de Estudos Técnicos
Daro Marcos Piffer

Diretora de Qualidade de Vida no Trabalho
Rita Girão Guimarães

Diretor de Ações Estratégicas
Gustavo Diefenthaeler

 


CONSELHO FISCAL NACIONAL BIÊNIO 2017/2019


Presidente
Ronaldo Ferreira (Curitiba)

Membros
Altino Almeida de Souza (Belém)
Ladislau Correa de Souza Neto (Rio de Janeiro)


EXPEDIENTE ANO 16 NÚMERO 55 IUTUBRO 2017


Por Sinal

Revista do Sindicato Nacional dos Funcionários do Banco Central do Brasil


Conselho Editorial

Daro Marcos Piffer, Edil Batista Júnior, Epitacio da Silva Ribeiro, Jordan Alisson Pereira, Maria Juliana Zeilmann Fabris, Nehemias Monteiro Júnior, Paula Castello Branco Teklenburg e Paulo Lino Gonçalves.
Conselheiros suplentes: Renato Fabiano Matheus e Ricardo Luis Piccoli


Secretária: Sandra de Sousa Leal

SCS Quadra 01 – Bloco G sala 401 – Térreo

Ed. Baracat – Asa Sul – Cep 70.309900 – Brasília – DF

Telefone: (61) 33228208

nacional@sinal.org.br

www.portal.sinal.org.br

Contato com a Por Sinal: porsinal@sinal.org.br

 

 

Redação

Coordenação geral e edição: Flavia Cavalcanti (Letra Viva Comunicação)

Reportagem: Jefferson Guedes, Verônica Couto, Elane Maciel, Cristina Chacel
Diagramação: Tabaruba Design

llustrações: Claudio Duarte
Impressão: Impressão: Ideal Gráfica e Editora Ltda
 Tiragem: 8.000

Assessoria de Comunicação do Sinal Nacional: Rapport.
www.rapportcomunica.com


Permitida a reprodução das matérias, desde que citada a fonte.

O Conselho Editorial não se responsabiliza pelas opiniões expressas nos artigos assinados.



 


 

 

TEMER ACELERA DESMONTE DO ESTADO

COM NOVO PACOTE, GOVERNO ESCOLHE O SERVIDOR COMO BODE EXPIATÓRIO, REDUZINDO SEUS DIREITOS E COLOCANDO EM RISCO A QUALIDADE DOS SERVIÇOS PÚBLICOS. 

 

JEFFERSON GUEDES

 


 

O desmonte do Estado brasileiro é uma proposta antiga das nossas elites. Com Temer no poder, finalmente esta ideia teve seu executor ideal. Por trás do discurso que prega a austeridade fiscal, o governo vem promovendo a redução drástica do papel do Estado como indutor do crescimento e do bem-estar social.
 

A trajetória de redução dos direitos sociais, porém, não acontece sem sobres-saltos. Que o diga a famigerada reforma da Previdência, cuja aprovação foi praticamente descartada pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Sem a reforma, que iria penalizar seriamente os mais pobres, o governo precisava de um “bode expiatório”. Carente de resultados concretos que indiquem uma melhora na crise fiscal e com uma economia que ainda colhe os efeitos da maior recessão já vivida pelo país, o governo escolheu o servidor federal como seu novo alvo. Promovendo mais um ataque ao funcionalismo, Temer pode dar sequência ao projeto das elites de enxugar o Estado.
 

É um recurso manjado, que tem como objetivo sensibilizar a opinião pública e com isso ocultar questões estruturais que, se discutidas, colocariam em xeque a própria política de austeridade fiscal. Seja como for, o fato é que um novo “pacote de maldades” está posto na mesa, com várias medidas que prejudicam o servidor. Entre elas, o adiamento dos reajustes dos salários previstos anteriormente para janeiro de 2018, o aumento da contribuição previdenciária de 11% para 14%, o cancelamento do reajuste das comissões e a revisão da estrutura das carreiras, rebaixando os salários iniciais para R$ 5.000 e alongando-os para 30 níveis.
 

SATANIZAÇÃO DO SERVIDOR

A justificativa para a redução dos gastos com pessoal, segundo o Ministério do Planejamento, é que a folha de pagamento do funcionalismo federal é o segundo maior gasto do Orçamento – R$ 162,4 bilhões, em 2017.

“Este discurso possui um viés bem definido e totalmente parcial”, afirma Alessandra de Moura, economista do Dieese. O erro, a seu ver, é que o governo apresenta os gastos primários da União como se fossem os gastos totais, ignorando quase metade da execução do Orçamento Geral da União. Considerando-se o orçamento como um todo – e não apenas as despesas primárias
 

–, verifica-se que em 2016, por exemplo, o gasto com juros e amortizações da dívida pública (incluídas as operações de swap cambial) representou 6,49% do PIB. Houve, é verdade, uma redução significativa em relação a 2015, quando o serviço da dívida consumiu 8,36% do PIB. Ainda assim, esta conta continua pesada, coisa que o governo simplesmente se recusa a discutir. É mais fácil, na lógica do Planalto, atacar o funcionalismo.
 

Os números, porém, favorecem os servidores. Alessandra de Moura afirma que o Dieese monitora atentamente a relação entre receitas e gastos com folha de pessoal. Com base nos dados oficiais do Boletim Estatístico de Pessoal(BEP), produzido pelo Ministério do Planejamento, fica patente que o gasto com pessoal está controlado pelos critérios da Lei de Responsabilidade Fiscal há pelo menos dez anos. Os últimos dados disponíveis indicam que o governo gasta 39,2% de suas receitas correntes líquidas com a folha dos servidores – muito abaixo do limite de 50% definido pela LRF.

Em relação ao PIB, as despesas com o funcionalismo estavam estacionadas em 4,3% do PIB no governo Dilma, mas deram um salto para 5,3% no ano passado, já com Temer no poder. E aí o problema, de novo, está na baixa arrecadação. “Não estamos vendo nenhuma ação concreta, tanto do Poder Executivo quanto do Legislativo, visando retroceder a queda na arrecadação, que de maneira persistente tem apresentado resultados frustrantes”, afirma Alessandra de Moura.

Para Nehemias Monteiro Junior, membro do Conselho Regional do SinalRJ, esse discurso de satanização do servidor baseado na “onerosa folha de pagamento do funcionalismo” não se sustenta. Não é nada excepcional, na sua visão, que o gasto pessoal seja a segunda despesa primária da União. “Não podemos perder de vista as inúmeras responsabilidades do Estado, que cuida da segurança, provê relações exteriores, educação, saúde e precisa de uma burocracia para regulamentar e executar todo um conjunto de políticas públicas. Por tudo isso, não seria de se estranhar se a folha do servidor fosse a principal despesa primária”, analisa.

O dirigente do Sinal-RJ propõe um exercício de futurologia para dar uma dimensão de como é equivocado esse discurso do governo. “Se um governo demitisse todos os servidores civis do Executivo e, além disso, desmobilizasse as Forças Armadas, passando para o Estado zero, a redução anual de gastos seria da ordem de R$ 116 bilhões, considerando-se o orçamento de 2016. Parece muito dinheiro, mas no mesmo ano o gasto público primário foi de R$ 1,2 trilhão.”

Portanto, o governo segue enxugando gelo. Aliás, se o governo, de uma hora para outra, resolvesse despedir todos os seus servidores, as despesas com agentes terceirizados cresceriam significativamente. E nada garante que haveria economia por conta disso. Nesse sentido, é importante notar que a despesa com terceirização do governo federal cresceu 82%, entre 2005 e 2010, uma taxa muito superior aos gastos fixos e variáveis com pessoal civil, aposentadorias  e pensões.

Dados mais recentes indicam que a tendência não se reverteu. Em 2016, o Executivo federal gastou R$ 25,1 bilhões só com serviços terceirizados de informática, recepcionistas, manutenção, vigilância, locação de imóveis e limpeza. A título de comparação, o valor é equivalente ao orçamento da educação básica para 2017. Ou seja, o governo reclama dos gastos com o funcionalismo, sinaliza para a sociedade que é preciso reduzir essa despesa, mas continua gastando mal com sua quota de serviços terceirizados – que, segundo a tese liberal, deveriam servir para cortar despesas!

 

NÚMEROS INCONSISTENTES

O ministro do Planejamento, Dyogo Henrique de Oliveira, afirma que mudanças como a redução da remuneração de ingresso e ampliação das etapas de progressão de carreira terão um impacto de R$ 18,6 bilhões em cinco anos na redução da folha. O ministro disse ainda que cada novo servidor custará 70% a menos.

Alessandra de Moura questiona os números apresentados pelo governo: “Quando o ministro diz que cada novo servidor custará 70% menos, ele está querendo dizer que o Estado brasileiro será equivalente a 30% do que é hoje? Além disso, a previsão do impacto financeiro para os próximos cinco anos, em função da reestruturação das carreiras, não foi divulgada com a transparência necessária. Não há demonstração dos cálculos desses valores e nem de como será verificado esse resultado a cada período.”

As inconsistências não param por aí. Nehemias Monteiro lembra a edição da MP 765, pelo mesmo governo Temer, em 29/12/2016. A MP reorganizou cargos e carreiras, como a dos auditores fiscais, que receberam aumento no salário inicial, bônus de eficiência e redução dos níveis na tabela salarial. Eram 13 níveis, reduzidos pela MP para nove, permitindo ao auditor chegar mais rápido ao teto da carreira. Além disso, houve redução no tempo mínimo para passagem de um nível para o seguinte: eram 18 meses, foram reduzidos para 12.

A lógica da MP 765, segundo o dirigente do Sinal-RJ, era valorizar o funcionário público que ingressava na máquina estatal. Ao mesmo tempo, esta valorização servia também para atrair profissionais que já tenham certa experiência – requisito importante em cargos estratégicos, como o de auditor fiscal. Ou seja, a MP 765 fazia todo o sentido. Como pode então, questiona Nehemias, que menos de um ano depois o governo venha com um pacote de medidas que vai na direção oposta, ampliando os níveis hierárquicos e reduzindo o salário inicial de várias carreiras de igual sentido estratégico?

 

TERCEIRIZAÇÃO EM MARCHA

Cortar a folha do funcionalismo não vai fechar o rombo fiscal, o próprio governo sabe disso. Mas quais os desdobramentos desse jogo? A ampliação da terceirização e, com ela, uma privatização disfarçada do Estado? As medidas do governo podem levar a um colapso nos serviços públicos?

Com relação à terceirização, o governo já está preparando o terreno para sua ampliação. Alessandra de Moura cita a Instrução Normativa (IN) nº 5, publicada pelo Ministério do Planejamento, com validade a partir de novembro de 2017 e que trata dos procedimentos para contratação de serviços sob o regime de execução indireta no âmbito da administração pública federal direta, autarquias e fundações. De acordo com esta instrução, a administração pública poderá contratar por terceirização as atividades dos cargos extintos ou em extinção e admite a contratação de serviços de apoio administrativo.
 

“Se o cargo já está extinto ou em vias de ser extinto, por que a necessidade de permitir a contratação por meio de terceirização?”, questiona a economista. “Já se pode imaginar como será o serviço público daqui a alguns anos com a combinação de um sistema de demissão por desempenho míope e permissão para terceirização desenfreada.”
 

Ela entende que o desempenho de um servidor não está ligado somente à sua capacidade intrínseca, mas também às condições de trabalho e aos investimentos para execução do seu trabalho. “Quais serão os critérios de avaliação desse desempenho num cenário onde as despesas com custeio da máquina pública e investimentos estão sendo completamente alijadas?”, questiona.
 

Para Nehemias Monteiro, o colapso dos serviços públicos já está acontecendo. A Polícia Federal ficou quase um mês sem conseguir emitir passaporte, apesar de o governo coletar as respectivas taxas. Várias universidades federais já disseram que só têm dinheiro para pagar suas contas até outubro. A Polícia Rodoviária Federal não vai poder manter seus postos funcionando durante a noite, porque não tem recursos. Mesmo a atuação das tropas federais no Rio, que vive um estado de guerra permanente, também está comprometida, porque não há recursos.
 

Já estamos vivendo este colapso e isso vai aumentar nos próximos anos”, afirma Nehemias. Ele faz tal previsão não porque seja um profeta, mas sim porque esta é a consequência óbvia da aprovação do Teto de Gastos. Mesmo que o país confirme o final da recessão e volte a crescer, as despesas não poderão crescer devido ao teto estabelecido na Constituição. A demanda por mais serviços vai aumentar, até por conta do aumento populacional, mas toda a máquina pública estará emperrada. “Com o Banco Central não vai ser diferente”, acrescenta o dirigente do SinalRJ. “Vai faltar dinheiro para pagar as contas tanto nas regionais quanto na sede. O Estado brasileiro pode ter entrado em uma armadilha.” (Ver matéria sobre esvaziamento do Banco Central na página 11)
 

REMÉDIO OU VENENO?

A mídia liberal tem produzido reportagens e editorais com a defesa de “uma reforma trabalhista no setor público”. O objetivo seria alinhar as políticas salariais dos três poderes. Até que ponto uma reforma dessa amplitude seria prejudicial para os servidores a ponto de comprometer o próprio funcionamento da máquina pública?
 

Nehemias não descarta a ideia da reforma. É necessário, a seu ver, ajustar melhor cargos, funções e remunerações. O problema é que, frequentemente, o governo erra na direção e na dose. E aí o remédio pode virar veneno. Para o dirigente do Sinal-RJ, existem distorções salariais significativas que deveriam ser consideradas no âmbito de uma reforma trabalhista do serviço público. Dentro do Executivo, por exemplo, encontramos carreiras que exercem funções com graus de complexidade semelhantes, mas que não são remuneradas com isonomia. Há também a necessidade de equiparação ou realinhamento entre carreiras similares. Isso, sem falar em distorções gritantes, como valores de auxílio alimentação bem mais elevados no Legislativo e no Judiciário. Enfim, há muito por fazer. Mas por onde começar?
 

Para Alessandra de Moura, a questão central é a regulamentação da negociação coletiva no setor público, prevista na Constituição de 1988 e até hoje sem definição. Na visão da economista, a negociação coletiva é um instrumento estratégico e democrático para garantir o equilíbrio entre os interesses do governo e os interesses dos servidores.
 

Regulamentada a negociação coletiva, haveria, segundo ela, uma base sólida para a criação de uma política salarial permanente no serviço público.

Enfim, os servidores não querem defender apenas seus salários, mas igualmente um Estado forte e presente. Há uma estreita relação entre ambos. Na situação atual, tanto os servidores quanto o Estado brasileiro se enfraquecem. E quem perde com isso é a sociedade.

“O Estado não é uma empresa”, afirma Alessandra de Moura. “Ainda mais diante da realidade de um país com tantas desigualdades regionais e gargalos no seu desenvolvimento. O debate sobre a folha dos servidores não pode ser desconectado do papel que o Estado deve ter na sociedade.”
 

Ampliar esta discussão na sociedade é uma das grandes tarefas dos servidores nos próximos meses. Consciente disso, o Fórum Nacional de Carreiras Típicas de Estado (Fonacate) divulgou nota à imprensa e à sociedade comunicando que as carreiras estarão em estado de mobilização permanente contra as medidas anunciadas pelo governo federal.
 

“Mais uma vez, os servidores públicos são utilizados como ’bode expiatório’ de uma crise gestada por seguidos equívocos de política econômica associados a escândalos de corrupção sem precedentes. Mesmo nesse contexto, o funcionalismo sempre esteve comprometido em oferecer um serviço público de qualidade. É de se lamentar, ademais, que as medidas apresentadas pelo governo não tenham sido discutidas com as entidades representativas dos servidores públicos, que sempre estiveram abertas ao diálogo. Diante disso, estamos prontos para nos mobilizarmos e combatermos frontalmente esses absurdos e apontarmos os verdadeiros vilões que tanto contribuem para o atraso e para a crise que se instalou no Brasil nos últimos tempos”, diz a nota.

 

 

 

 


 

 

 

 

 

SINAL ALERTA PARA ESVAZIAMENTO DO BC 

 


 

Sinal já ligou seu sinal de alerta com o progressivo desmonte do Banco Central. A palavra “desmonte” pode soar forte,

mas há vários indícios nesse sentido. E não é de hoje. A questão vem sendo discutida há mais de uma década nas Assembleias Nacionais Deliberativas (ANDs) da categoria. O Relatório “Desmonte e Esvaziamento do Banco Central – Efeitos Internos e Externos”, divulgado na 21ª AND, em 2006, já fazia uma análise bastante sombria do esvaziamento da instituição.
 

Segundo este relatório, o avanço do receituário neoliberal no Brasil, a partir de meados da década de 90, também impactou as políticas do Banco Central. Conceitos como “desburocratização” e “modernidade”, então associados à proposta de Estado mínimo, levaram o Banco Central a implementar mudanças que acabaram afetando importantes atribuições legais.
 

A área de fiscalização, por exemplo, ganhou o status de supervisão, privilegiando a análise indireta, em detrimento da verificação do cumprimento de normas por parte das instituições financeiras e consórcios.
 

O controle cambial foi outra função afetada. Segundo Cleber Santos, gerente da Regional Recife de 2004 a 2016, hoje este controle “é pífio ou quase inexistente”. Ele afirma que é muito fácil checar tal afirmação. É só verificar a evasão de divisas ocorrida nos últimos anos e, também, as movimentações ilícitas produzidas pelos doleiros e políticos, fartamente documentadas pela Operação Lava-Jato. “Esses fatos não ocorriam quando o Bacen tinha o controle e gestão do sistema”, avalia.
 


REGIONAIS ESVAZIADAS
 

Outro problema, fruto da chamada “reestruturação” do Banco Central, é a centralização da maioria das atividades-fim em poucas representações, deixando a população de algumas regiões do país sem qualquer respaldo da autoridade monetária. A tabela na página 12 mostra a falta de representação dos departamentos do Banco Central nas regionais.
 

 

Única regional do BC da região Norte, Belém conta com representações de apenas seis departamentos: o Mecir (Departamento de Meio Circulante), Deseg (Departamento de Segurança), Depec (Departamento Econômico), Deati (Departamento de Atendimento Institucional), Desuc (Departamento de Supervisão de Cooperativas e de Instituições Não Bancárias) e a Gerência Administrativa Regional. Uma carência expressiva!
 

A supervisão bancária no Norte é um dos serviços que mais se ressentem da carência de equipes locais. O banco da Amazônia e o Banpará, por exemplo, são supervisionados por equipes do Rio de Janeiro e de Belo Horizonte. Já a análise de documentos e autorização para funcionamento das instituições financeiras do Norte é feita em Recife ou Curitiba, o que também implica em elevados custos com deslocamentos para essas cidades.

A sub-representação está diretamente associada à falta de pessoal em todas as praças em que o Banco atua. De 2007 até 2016, conforme o último dado fechado do Depes, o BC perdeu 1.055 servidores, reduzindo o quadro funcional da instituição para pouco mais de 4 mil (ver tabela abaixo).

 


 

Dados provisórios do ano em curso ampliam este déficit. Em agosto de 2017, o quadro ficou reduzido a 3.917 servidores. Com isso, o déficit de pessoal atingiu a marca de 2.553 servidores, que corresponde a 39,45% do efetivo previsto em lei (6.470 vagas).

A pergunta mais óbvia, então: a direção do Banco vai assistir inerte ao esvaziamento progressivo da instituição? Não necessariamente. É fato que o BC solicitou ao Ministério do Planejamento a liberação de 990 vagas para um novo concurso. Aliás, estão nas gavetas do Ministério do Planejamento os pedidos de novos concursos feitos por 32 órgãos federais para 2018.
 

Mas, em plena vigência do Teto de Gastos, o atendimento desses pedidos será bastante seletivo. Em reunião com representantes de diferentes categorias no fim de agosto, o secretário de Gestão de Pessoas do Ministério do Planejamento, Augusto Akira Chiba, afirmou que o governo deverá atender a apenas 20% dos pedidos de concurso recebidos. O déficit do pessoal no Banco Central, ao que tudo indica, permanecerá elevado. 

E se a realidade atual já é delicada, o que poderemos projetar para os próximos anos com a aprovação do pacote de maldades do governo para o servidor? Miriam de Oliveira, que foi chefe do Departamento de Gestão de Pessoas (Depes) por três anos e hoje é voz presente nos debates da categoria, não esconde sua preocupação. Ela entende que as medidas anunciadas pelo governo vêm de encontro às expectativas dos servidores do BC e aprofundam o descontentamento. “Esse sentimento não pode ser ignorado, sob pena de comprometer a qualidade dos serviços”, avalia. 
 

Há algum tempo, segundo Miriam, é possível perceber o interesse dos servidores, notadamente os mais novos, em concursos para outras carreiras, consideradas mais atrativas. Os principais motivos, a seu ver, são o valor e o modelo de remuneração e a oportunidade de ser lotado em outras cidades que não aquelas em que o BC tem representação. Ainda assim, ela faz questão de ressaltar que o quadro de servidores do Banco é de muita qualidade. “Apesar dos pesares, os funcionários têm cumprido sua obrigação e demonstrado compromisso com os valores da instituição.” No entanto, ela chama a atenção para o descompasso entre a remuneração da carreira especialista e de outras carreiras de igual nível de importância. A seu ver, isso tem alimentado um profundo sentimento de desvalorização entre seus integrantes. 
 

A Lei 4.595/64, que dispõe sobre a existência do Banco Central, é sempre uma referência importante quando se discutem os rumos da instituição. Em seu parágrafo 2°, inciso VIII, a lei estipula que “o Banco Central da República do Brasil instalará delegacias, com autorização do Conselho Monetário Nacional, nas diferentes regiões geoeconômicas do país, tendo em vista a descentralização administrativa para distribuição e recolhimento da moeda e o cumprimento das decisões adotadas pelo mesmo Conselho ou prescritas em lei”. A política em vigor, que retira funções das regionais, não estaria em desacordo com este princípio básico da Lei 4.595/64? 


“Esse aspecto da Lei foi bastante discutido quando da mudança do modelo de regionalização, no final dos anos 1990”, afirma Miriam Oliveira. “Concluiu-se que o modelo aprovado não afrontava a Lei. No que diz respeito à distribuição e ao recolhimento da moeda, o BC manteve as mesmas representações que havia antes da alteração do modelo.” 
 

Para Edilson Rodrigues, do Sinal de Belém, é preciso rever este modelo. Não só por conta da deterioração da qualidade dos serviços, mas também por uma questão estratégica: uma forte presença do Banco Central na região ajudaria a reverter a desigualdade regional do país. É sabido, segundo Edilson, que a presença do sistema financeiro contribui significativamente para o desenvolvimento. A ampliação da presença do Banco Central em Belém é fundamental dentro de um contexto maior de definição de políticas públicas para o desenvolvimento regional. Se não fizermos um esforço para alterar esta situação, avalia, a desigualdade se perpetua. 


Na visão do dirigente, a direção do Banco não tem uma política para as regionais conectada com essa visão de desenvolvimento. Cléber Santos concorda com ele: “As regionais estão sendo paulatinamente esvaziadas de pessoal e de competências, tornando-se meros agentes administrativos.”
 

O que fazer, então? 
 

Edilson Rodrigues e seus colegas de Belém elaboraram um documento, aprovado em assembleia do Sinal, com algumas propostas bem específicas para reverter o esvaziamento daquela regional. A primeira delas consiste na elaboração de planejamento visando a ampliação de representações de departamentos. Esse estudo seria feito pelo Departamento de Planejamento, Orçamento e Gestão do BC (Depog). 
 

Outra medida fundamental, segundo o documento, é a reversão do fechamento da representação da Procuradoria Regional do Banco Central em Belém. A Procuradoria atua para preservar os direitos de todos os usuários do sistema bancário, como investidores, depositantes e poupadores, à medida que auxilia o Banco Central do Brasil na fiscalização das instituições financeiras. Todas as regionais têm uma Procuradoria própria, menos Belém. A equipe remota sediada em Brasília, proposta para substituir a Procuradoria de Belém, poderia ser mantida como suporte ao procurador lotado na capital paraense, até mesmo para representação em audiências, caso necessário. A reposição de servidores transferidos da Regional de Belém é outro item essencial desta pauta. O objetivo aqui é garantir um contingente mínimo compatível com a continuidade das atividades e necessidades da região. Finalmente, os funcionários do BC na região defendem o remanejamento da coordenação do Departamento Econômico em Belém, hoje sediada em Fortaleza.


A REVITALIZAÇÃO DO BC

Todas essas medidas seriam muito bem-vindas, lógico. Mas o ponto crucial, na visão de Cleber Santos, deve ser a valorização da instituição Banco Central. Ele defende que essa questão seja amplamente debatida entre a categoria, por ter sérias implicações para a perenização das atividades do BC nos moldes e funções com que foi criado. Ele lembra, em sua longa trajetória profissional, de alguns momentos em que medidas importantes foram tomadas nesta direção. Entre 2004 e 2009, houve um programa de revitalização do BC que ele julgou ser promissor na época. Oito anos depois, com o país ainda atolado em uma recessão, esse programa se torna ainda mais necessário. 
 

“É preciso defender áreas estratégicas como o Mecir (Meio Circulante)”, argumenta. “Atualmente, existe a possibilidade de se transferir toda a atividade de Meio Circulante para o Banco do Brasil, o que fere frontalmente a previsão contida na Lei 4.595, que estabelece a atividade de Meio Circulante como privativa do Bacen.” Lutar para manter o Mecir na esfera do BC é um caminho, segundo Cleber Santos, de valorizar a instituição, garantindo que ela possa contribuir para o fortalecimento de um Estado forte e inclusivo.

Avante na luta, então!


 

 

 


 


SEGUNDO DENÚNCIA DA COMISSÃO, ENTRE OS 10 PRINCIPAIS DEVEDORES DA PREVIDÊNCIA ESTÃO OS CINCO MAIORES BANCOS DO PAÍS, COM UMA DÍVIDA ACUMULADA DE R$ 3,6 BILHÕES.

MÁ GESTÃO PROVOCA SANGRIA DE RECURSOS
 

VERÔNICA COUTO
 

 

A CPI da Previdência Social, criada para investigar as contas e a viabilidade do modelo brasileiro, concluiu  que  grandesgrupos econômicos, liderados pelos bancos, empreiteiras e frigoríficos, estão promovendo uma sangria bilionária nos recursos da Seguridade Social. De acordo com os dados levantados pela Comissão, a Previdência é sustentável, ao contrário do que diz o governo, e não é preciso reformá-la. O problema está na gestão do Sistema, que precisa ser corrigida e melhorada. Para tanto, os parlamentares propõem alterar a Lei de Execução Fiscal, o Código Penal e as estruturas de controle e fiscalização com vistas a penalizar os “devedores contumazes” – empresas que, mesmo lucrativas, há anos não pagam suas contribuições previdenciárias.
 

A seu favor, segundo o relatório da CPI, esses devedores têm os sucessivos planos de refinanciamento fiscal (Refis), considerados por técnicos consultados pelos parlamentares como um incentivo à sonegação, e a morosidade da Justiça. A apresentação do relatório final da CPI está prevista para outubro.

Entre os dez principais devedores da Previdência, constam os cinco maiores bancos do país – Bradesco, Itaú, Santander, Caixa, Banco do Brasil –, com um débito acumulado de R$ 3,6 bilhões. Os bancos são grandes devedores, diz o senador Paulo Paim (PT-RS), presidente da CPI e, também, dos mais interessados na reforma proposta pelo governo, que dificulta o acesso aos benefícios e praticamente inviabiliza a aposentadoria para a maior parte da população. “Querem ajudar a quebrar a Previdência para fortalecer os fundos de pensão privados”.

A ineficácia na cobrança das dívidas previdenciárias de todos os setores, mais a sonegação, as transferências de recursos da Seguridade para outros fins (por meio da DRU), as fraudes, as desonerações, entre outros ralos, provocaram perdas de R$ 483 bilhões à Seguridade Social, em 2016. O número, apresentado por Paulo Penteado Teixeira Júnior, promotor de Justiça do Ministério Público de São Paulo e primeiro-secretário da Associação Paulista do Ministério Público, APMP, é mais de três vezes o déficit da Previdência alegado pelo governo, de R$ 151,9 bilhões. Esse valor é contestado por economistas, porque contabiliza apenas as contribuições de patrões e empregados e desconsidera as demais fontes de receita da Seguridade previstas na Constituição, como CSLL, PIS, Cofins e loterias.
 

Da Dívida Ativa da União – R$ 1,8 trilhão no período junho 2016 a junho 2017 –, R$ 424 bilhões referem-se a valores devidos à Previdência e outros R$ 530 bilhões, a contribuições sociais. Só de apropriação indébita, quando a empresa desconta a contribuição do trabalhador mas não a repassa ao Estado, são cerca de R$ 25 bilhões por ano, na estimativa de Paim.
 

“A Previdência é sustentável, o problema é a má gestão”, garante o senador. “O que vimos na CPI foi a não cobrança das dívidas, a sonegação, a fraude e a falta de estrutura de fiscalização.” Atualmente, os maiores devedores operam em brechas regulatórias e judicializam as cobranças, apelando para recursos protelatórios – muitas vezes, impetrados por advogados públicos, que conduzem os processos a intermináveis labirintos jurídicos. “Muitas empresas estão deixando de pagar as contribuições como uma estratégia de negócio, para obter vantagem competitiva no mercado”,  acredita.
 


AS BRECHAS PARA SONEGAR
 

O cenário de perdas toleradas detectado pela CPI acendeu um sinal de alerta dentro do governo. À medida que se foi delineando para os parlamentares a sistemática construída ao longo dos anos pelas empresas para escapar da contribuição da Previdência, o problema finalmente começou a surgir na pauta oficial. “O que não aparecia antes, agora começa a aparecer. Eles já admitem que existe fraude”, destaca Paim.

Na semana seguinte à última audiência pública realizada pela CPI, em 21 de setembro, os jornais trouxeram pelo menos duas grandes reportagens sobre ações da Receita Federal para investigar devedores da Previdência. A Folha de S.Paulo, de 22 de setembro, noticiou que a Receita teria criado um grupo de trabalho para investigar se bancos privados estão se aproveitando de brechas na legislação fiscal para sonegar impostos. A “perda potencial” de arrecadação com manobras de engenharia tributária poderia ter chegado a R$ 15 bilhões, só no ano passado. Uma das práticas suspeitas consistiria em eduzir o resultado tributável da instituição financeira, transferindo uma carteira de crédito lucrativa para empresa do mesmo grupo que esteja apresentando prejuízo fiscal. A operação acontece em uma das muitas zonas cinzentas não tipificadas pela lei: as brechas para perdas na arrecadação.

Em outra reportagem, publicada no O Globo, de 26 de setembro, a Receita Federal informava que “mais de 46 mil empresas não recolheram a previdência dos seus funcionários nos últimos quatro anos”, o equivalente a R$ 1,406 bilhão sonegados. Corporações de risco ambiental, do segmento químico, siderúrgico e da construção civil, por exemplo, deixaram de pagar o adicional previdenciário (alíquotas de 2% e 3%), devido aos riscos que a atividade impõe aos trabalhadores, recolhendo apenas 1%. A Receita teria enviado alerta aos sonegadores. Mas os que forem autuados, segundo recomendação do próprio subsecretário de Fiscalização da Receita, Iágaro Martins, poderão aderir ao novo programa de recuperação fiscal (Refis) – o mais recente foi aprovado no fim de setembro, com mais descontos e facilidades.

 

“OS BENEFÍCIOS” DO REFIS

Para Paulo Penteado, os Refis se sucedem há décadas e “são um incentivo ao não pagamento dos tributos, um indutor de mau comportamento fiscal”. Estudo da Unafisco estima uma queda anual na arrecadação da ordem de R$ 27,5 bilhões, como efeito do anúncio recorrente de novas condições de renegociação. “Os advogados já me ligam para saber quando vão abrir novos parcelamentos”, conta o procurador-chefe da Dívida Ativa da 3ª Região, Wellington Viturino de Oliveira. Ou seja, as empresas já se preparam para o parcelamento e optam por não pagar as dívidas nem fazer o recolhimento dos tributos.

Desde 2000, já foram mais de 30 programas de refinanciamento de débitos tributários, segundo Vilson Romero, assessor de Estudos Socioeconômicos da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip).

“Na Previdência, hoje, vemos programas beneficiando prefeituras que não recolheram de seus empregados celetistas, empresários do agronegócio sendo beneficiados com isenções ou alongamento de prazo e diminuição de taxas para pagarem contribuições previdenciárias rurais”, adverte. “Todas essas medidas são o equivalente a ‘fazer esmola com o chapéu alheio’, fragilizando o cofre da Previdência Social.”

Como tática geral, as empresas aderem ao programa, mas logo interrompem o pagamento das parcelas para aguardar a aprovação de novas condições de refinanciamento. “Para ter uma certidão negativa de débito (CND), exigida em financiamentos e licitações públicas, a empresa paga apenas a primeira parcela e espera para ingressar no próximo programa”, explica Luiz Roberto Pires Domingues

Júnior, assessor da presidência do Sindicato Nacional dos Funcionários do Banco Central (Sinal), que teve participação ativa nos trabalhos da CPI. Ele lembra que esse mecanismo não traz nenhum ganho para o país e penaliza os empresários corretos, que pagam os impostos. Foi graças ao Refis que a JBS conseguiu empréstimos no BNDES – operação que agora é objeto de nova CPI no Congresso.

A  ideia de parcelar o débito para evitar que a empresa vá à falência é interessante, mas não há critérios objetivos, nem análise dos dados contábeis para aprovar a adesão ao Refis”, afirma Antônio José, diretor da Associação dos Juízes Federais

(Ajufe). “Com forte lobby no Congresso Nacional, as empresas acabam ingressando no programa, mesmo tendo condição de pagar a dívida. Trata-se de uma estratégia de concorrência desleal, que afronta o próprio sistema capitalista.”


DISPUTA JUDICIAL

A lista de grandes devedores da Previdência – que coincide com a dos devedores trabalhistas, de acordo com a secretária da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, desembargadora Silvana Abramo – inclui, além de bancos, empreiteiras e frigoríficos, grandes corporações, como a Vale, estados e municípios (que têm regime próprio, mas não fazem os repasses devidos à União), instituições de ensino e empresas  de terceirização.


Grande parte dos débitos está judicializada. Com relação às contribuições previdenciárias, por exemplo, os bancos discutem na Justiça se as verbas têm natureza “indenizatória”, isenta, ou “remuneratória”, e se são tributáveis. Dias de férias vendidos, conversão de vale-transporte em dinheiro, auxílios, etc. E outro conjunto significativo de débitos deriva das chamadas “compensações de ofício”, encontro de contas entre débitos e créditos fiscais. A Lei de Execuções Fiscais de 1975 foi atualizada em 2005, permitindo à Receita realizar a compensação de tributos, independentemente de origem. Com base nessa lei, esses grandes devedores argumentam ter um crédito fiscal com o governo maior do que sua dívida previdenciária. “A Receita não devolve o crédito e as empresas não pagam os tributos”, explica o assessor do Sinal. 
 

A mecânica da operação segue basicamente o mesmo roteiro. Muitas empresas exportadoras acumulam créditos presumidos de PIS e Cofins. A Receita os fiscaliza, para que sejam ou não homologados. Antes da devolução do crédito, apura se a empresa tem débito e propõe a compensação, mas em ritmo extremamente lento. De acordo com Felipe Ricetti Marques, representante da Swift Armour, uma das devedoras convocadas à audiência da CPI, a empresa tem processo administrativo relacionado a crédito fiscal, já homologado, parado há 11 anos na administração pública. A JBS, com R$ 2,4 bilhões inscritos na Dívida Ativa, alega ter R$ 1,5 bilhão de créditos homologados a receber da União, de acordo com o gerente jurídico da sua área tributária, Fábio Chilo.  
 

“Retardar a liquidação de uma dívida é um excelente negócio para o Tesouro Nacional”, alertou o senador José Pimentel (PT-CE). Basicamente, porque os créditos retidos pelo governo não são repassados à Previdência. Por isso, a CPI vai propor medidas legais que impeçam a inclusão de contribuições previdenciárias e tributos destinados à Seguridade Social, como PIS, Cofins e CSLL, nas operações de compensação.

COMPASSO DE ESPERA

A compensação fiscal demora, e a execução fiscal das dívidas, também. O juiz federal Renato Lopes Becho calcula que a administração tributária leve em média cinco anos pra ajuizar uma execução fiscal. Com a demora, muitas vezes, os devedores já terão desaparecido na hora da cobrança. “Segundo o IBGE, das empresas que entraram em atividade em 2009, mais da metade não sobreviveu”, observa.

Marcelo Fernando Bolsi, representante da Federação Nacional dos Delegados da Polícia Federal (Fenadepol), estima que a cobrança das dívidas consiga recuperar menos de 5% do que é executado. Para garantir a exequibilidade das dívidas, ele recomenda que a execução possa ser feita por meio de processo administrativo, como acontece na Espanha. 
 

“Se todos pagassem em dia, não seria preciso nenhuma reforma, como essa proposta pelo governo, que ataca diretamente os mais pobres”, afirmou Paim, durante uma audiência pública da Comissão. “Dão anistia para o devedor, e depois mandam o trabalhador pagar, pagar, pagar, e não conseguir se aposentar.” Em tempo: a proposta de reforma da Previdência do Planalto, destaca o senador, não traz uma linha sobre combate a fraudes.

 

 


CERCO AOS SONEGADORES

 

A CPI da Previdência Social recolheu propostas de várias entidades para melhorar a gestão do sistema. São penas mais duras para devedores e fraudadores, por meio de alterações no Código Penal, mudanças legislativas que permitam acelerar processos de cobrança e execução das dívidas, restrições a desonerações fiscais, aumento de pessoal dedicado à fiscalização, instituição de maior governança na Seguridade.

A participação do Sinal foi importante. Luiz Roberto Domingues defendeu a proibição da inclusão de dívidas previdenciárias em compensação fiscal, a definição de uma regra estável para a avaliação atuarial da Previdência, a criação de uma Lei Orgânica e de uma unidade gestora única para o Sistema, que teria ainda um Conselho Nacional de Seguridade Social para apoiá-lo.

“O INSS baixa uma portaria, com uma série de condicionantes, procedimentos e dificuldades para a concessão do benefício. Mas quem deu autonomia para fazer isso?”, questiona o assessor do Sindicato. Segundo ele, os procedimentos administrativos do INSS, instruções normativas internas, entre outros instrumentos, provocam excesso de demandas judiciais. Só na 1ª Região da Justiça Federal, diz, foram 47 mil processos, em 2016. “E o custo do processo é o dobro do valor dos benefícios. O Estado gasta em média R$ 7 mil no trânsito judicial, para ganhar um benefício de pouco mais de R$ 1 mil.”

Fonte de recursos. Domingues também alerta para o fato de que a fórmula de avaliação atuarial, aquela que projeta o crescimento demográfico e a demanda futura de recursos para atender todos que venham a se aposentar, muda todo ano. “A ponto de, na Lei Orçamentária de 2016, o governo ter previsto um déficit de R$ 9 bilhões para 2090 e, na lei de 2017, esta estimativa ter saltado para R$ 170 bilhões.” O governo trabalha com a projeção de crescimento da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), que é a média de oito cidades brasileiras. “Uma referência que nem o IBGE usa mais”, critica. “É preciso estabelecer uma fórmula geral, devidamente publicada, que acabe com a disputa de narrativas, porque o sistema é claramente superavitário.” Segundo ele, tornou-se a maior fonte de recursos do Tesouro, porque, ao contrário de outros tributos, os recursos da Previdência não precisam ser divididos com estados e municípios. O Conselho Nacional de Seguridade Social teria participação de usuários, trabalhadores do Sistema, empregadores e governo, com poder deliberativo sobre os recursos da Previdência. “O governo é fiel depositário desse dinheiro, não é dele”, lembra.

O perigo das desonerações. Outro ponto crítico a ser apontado pela CPI são as desonerações. De acordo com o representante do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Sindifisco), Cláudio Marcio, R$ 450 bilhões deixaram de entrar no cofre da Previdência nos últimos cinco anos, “por conta da desoneração desenfreada”. O próprio secretário da Receita Federal, Jorge Rachid, reconheceu em audiência pública que “há um desequilíbrio” no instrumento, estimando um total de R$ 64,4 bilhões em desonerações e renúncias, em 2016.

Rachid diz que um projeto de lei será apresentado pelo governo ao Congresso, limitando as desonerações previdenciárias. “É preciso reavaliar o modelo de renúncias tributárias no contexto da Previdência Social. Os recursos não devem ser utilizados como incentivos a setores econômicos específicos.” Segundo ele, a Receita já constatou que algumas empresas demitem empregados para contratá-los como microempresários individuais (MEI), driblando a obrigação previdenciária.

Combate às fraudes. Do total de R$ 33,7 bilhões de benefícios previdenciários pagos mensalmente pelo INSS, um terço envolve fraudes ao sistema, de acordo com cálculos de Marcelo Fernando Bolsi, representante da Fenadepol. A maior parte, por meio de apresentação de documentos falsos e pela chamada Gfip extemporânea, quando a Guia de Recolhimento do FGTS e Informações a Previdência Social é emitida fora do prazo legal. “Anualmente, R$ 143 bilhões são escoados em fraudes previdenciárias”, diz.

Para combater o problema, ele recomenda o cruzamento dos sistemas de dados do governo, além do aumento do pessoal de fiscalização e o agravamento das penas, pleitos feitos por muitos participantes da CPI. Rachid admite que o número de auditores fiscais caiu de 12,6 mil, em 2008, para menos de 9,6 mil, em 2017. No INSS, a situação é a mesma. O total de servidores caiu de 44 mil, em 2011, para 33 mil, segundo o presidente do instituto, Leonardo Gadelha.

 

 

 

 

 

 


 


 

 

 

 

FUTURO SOMBRIO PARA O BANCO DE FOMENTO
TÉCNICOS AVALIAM QUE COM NOVA TAXA DE JUROS BNDES ENCOLHE, PERDE COMPETITIVIDADE E COMPROMETE A PRODUÇÃO E O CRESCIMENTO DO PAÍS.

 

CRISTINA CHACEL

 

 

A decisão em Brasília fez tremer os alicerces do imponente edifício da Avenida Chile nº 100, no Rio de Janeiro, sede do BNDES.

A aprovação, por 36 votos contra 14, da Medida Provisória 777/2017 atingiu em cheio a estrutura do sistema de crédito direcionado do país, retirando do vetusto banco público de desenvolvimento sua principal ferramenta de trabalho e seu meio de sobrevivência no mercado financeiro. Ao autorizar a adoção da Taxa de Longo Prazo (TLP) nos contratos de financiamento do BNDES a partir de janeiro de 2018, o Senado elevou o custo do capital para investimento e jogou a instituição em um lodo de incertezas. Na mais conservadora das hipóteses, o velho banco de fomento, criado por Getúlio Vargas, há 65 anos, vai encolher, e, com ele, a indústria nacional e seus postos de trabalho.
 

Na prática, o dinheiro do funding institucional do Banco -o FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador) e os empréstimos do Tesouro -ficou mais caro. Será remunerado por uma taxa equivalente à NTN-B (Nota do Tesouro Nacional, Série B), com vencimento médio de cinco anos, formada pela variação do índice oficial de inflação, o IPCA, mais o rendimento real do título. Trata-se de uma guinada. Desde a edição do Plano Real, em 1994, os empréstimos do BNDES são regidos pela TJLP, a Taxa de Juros de Longo Prazo, arbitrada pelo Conselho Monetário Nacional com base na meta de inflação e do risco-país, mais baixa e flutuante, que vem sendo mantida em 7%.

Sem a vantagem da taxa incentivada, o BNDES perde competitividade. Nos últimos anos, a diferença entre a NTN-B de cinco anos e a TJLP foi superior a cinco pontos percentuais. A aposta é de que o ente mercado -leia-se bancos comer ciais privados, nacionais ou estrangeiros  absorverá automaticamente perto de 50% das operações do banco público. O custo do investimento produtivo no Brasil oscilará ao sabor das mudanças de temperatura e pressão do sistema financeiro global. Peças no tabuleiro, este é o novo jogo a jogar.

“O que a gente vinha falando está acontecendo: a redução do Estado brasileiro. Estão desmantelando o legado de Getúlio Vargas. A CLT, a Petrobras, a Eletrobras e o BNDES. Este é um projeto que começou com Collor e FHC, foi interrompido na Era Lula, e, agora, aproveitando-se do momento de fragilidade do país, está sendo completado pelo governo Temer”, pontuou o economista Thiago Mitidieri, presidente da Associação de Funcionários do BNDES.



DUAS VISÕES

A argumentação do governo em defesa da mudança no custo financeiro do BNDES é de ordem fiscal: o impacto na dívida bruta do subsídio implícito associado à diferença entre a TJLP (7%) e a taxa primária de juros, a Selic, que, após longos meses estacionada em estratosféricos 14,25%, vem sendo derrubada em ritmo de aventura pelo Copom, e no momento do fechamento desta edição da Por Sinal está contida em 8,25%. Alegam ainda os defensores da nova TLP, proposta pela novíssima geração de economistas reconhecidos como neoliberais, razões de política monetária. A TJLP seria um fator de redução da potência monetária e responsável pela alta da taxa Selic.

Há controvérsia. Quem observa o sistema financeiro pela ótica da produção e do crescimento diz que a TJLP existe para corrigir a falha da Selic, persistentemente alta, e que o endividamento público se mede pelo critério da dívida líquida e não da dívida bruta. O estoque de empréstimos do Tesouro, cujos aportes realizados entre 2008 e 2014 somaram R$ 400 bilhões, entram no balanço como um ativo, sustenta a economista Beatriz Meirelles, dez anos de BNDES, a maioria deles dedicados ao acompanhamento de pesquisa econômica na área fiscal. Ela explica:
 

“Na prática, não tem nenhum impacto no indicador da dívida líquida, porque o Tesouro, de um lado, emitiu o título e, do outro, constituiu o ativo. Um anula o outro. Na dívida bruta, o estoque de aportes não entra como ativo. A Fazenda argumenta que o endividamento do setor público não pode ser medido pela dívida líquida porque os ativos são de longo prazo, 35 anos, e, portanto, não tem liquidez. Só que agora o Tesouro está pedindo a devolução antecipada dos aportes que se acumularam no caixa do banco com a recessão. Mas esses aportes estão aplicados em títulos públicos. Se considerarmos que todas as receitas do BNDES são receitas do Estado brasileiro, é uma soma zero. No fluxo, esse dinheiro que está no caixa do BNDES não tem custo fiscal porque é devolvido sob a forma de dividendos.”
 

A aprovação da TLP, é fato, reacende o debate econômico e reprisa, em projeção nacional, o clássico antagonismo entre capital produtivo versus capital financeiro, desenvolvimentismo versus liberalismo, Fiesp versus Febraban, que parecia amortecido na Era PT. A cartilha neoliberal recomenda ajuste fiscal por meio de corte de gastos, mesmo que ao custo social de uma longa recessão e 14 milhões de desempregados. A desenvolvimentista preconiza que o melhor jeito de alcançar o ajustamento é promovendo crescimento econômico, uma prerrogativa do Estado, que tem o poder sobre a circulação da moeda.

Marcelo Miterhof, economista de carreira do banco, da escola desenvolvimentista de Campinas, a Unicamp, e que durante a gestão de Luciano Coutinho atuou como assessor da presidência, critica a lógica desta política econômica:

“Eles apostaram na fada da credibilidade. A Dilma sai, a gente anuncia corte de gastos e os mercados vão ficar mais otimistas. Os prêmios de risco vão cair, os juros acompanham a queda e a economia cresce. Só que não é assim que funciona. Primeiro, os mercados não ficaram tão otimistas. Segundo, o que eles chamam de ajustamento fiscal é um desajustamento, porque a recessão provoca queda das re ceitas tributárias. A rigor, a política fiscal é mais importante que a monetária. Os juros estão caindo por conta da recessão brutal e não está adiantando nada.”

Nessa disputa, o BNDES é bucha de canhão. Beatriz Meirelles comenta:

“É o fetiche dos anos 1990. Não resta a menor dúvida que o projeto em curso é reduzir o BNDES à insignificância. Por que a TLP leva a isso? É uma taxa mais alta, muito volátil e pró-cíclica. Quando a economia vai mal, a taxa sobe. Quando vai bem, cai. Com este custo do funding, o BNDES fica sem qualquer instrumento para fazer política industrial. Não dispõe de ferramenta de trabalho nem para financiar projetos de alta externalidade, que é a concepção ultraliberal de banco de desenvolvimento.”

“O papel mais exíguo de um banco de desenvolvimento é financiar as atividades cujo retorno não é totalmente capturado no preço pelo agente financeiro. Quando um setor produz inovação e ela é absorvida por outro setor, a sociedade está ga nhando”, acrescenta Miterhof.
 


DESTINO INCERTO
 

Não por outra razão, em sua função exígua, o BNDES fomenta infraestrutura e inovação, ambos setores de alta externalidade, por meio de crédito dire cionado. O que vai ser desses empreendimentos, com o advento da TLP, ainda é uma incógnita. Há quem aposte que os investidores do setor de infraestrutura vão buscar capital mais barato no exterior, o que expõe o tomador a um risco cambial. Já os esforços em inovação poderiam ser absorvidos todos pela Finep, que já atua no financiamento de tecnologia e conhecimento de fronteira.

É voz corrente que financiar empreendimentos de alta externalidade, longo prazo e baixo retorno, como os de infraestrutura e inovação, não é vocação nem intenção dos bancos comerciais, que ganham mais investindo em papéis financeiros de curto prazo. Para o investimento produtivo e para o próprio BNDES, entretanto, a TLP parece ser um indicador inadequado, porque aumenta o risco e a incerteza do empreendimento de longo prazo. É o que argumenta o economista Fernando Nogueira da Costa, professor do Instituto de Economia da Unicamp:

“Belo Monte é a terceira maior hidrelétrica do mundo. Um projeto de longa maturação. O BNDES financiou 80% do empreendimento. Os outros 20% ficaram com os fundos de pensão. O pré-sal é a mesma coisa. Petróleo é um negócio de dez anos de maturação. Por isso foi financiado por bancos públicos. Nem um, nem outro, podem ser financiados por uma taxa cujo prazo de referência é de cinco anos, inferior à maturação do empreendimento e que ainda por cima é indexada ao IPCA. Estão indexando o investimento a uma taxa volátil. O risco, nesse caso, é a inflação corromper o investimento de longo prazo, antes mesmo que o investidor possa repassar a alta para o preço.”

Diretora da área de Energia, Transporte Socioambiental e Saneamento do BNDES, Marilene Ramos advertiu, durante encontro de meio ambiente na sede do banco, que a TLP vai fazer desaparecer os incentivos para projetos sustentáveis. Marilene defendeu condições de financiamento diferenciadas para projetos “verdes”, com taxas de juros mais baixas. E mostrou resultados: a política adotada pelo BNDES permitiu que o país desenvolvesse o segmento de energia eólica, que saiu de “produção insignificante” para uma capacidade instalada de 11 gigawatts.

Mas se ainda é incerto o destino dos investimentos de alta externalidade, o mesmo não se pode dizer daqueles segmentos que recebem crédito direcionado do BNDES porque a instituição também atua para compensar os juros altos sobre o investimento em geral. Cerca de 50% da carteira do Banco são de operações indiretas do Finame, a linha de financiamento para a compra de bens de capital, realizadas em prazos de cinco anos, em média. Como não é um banco de varejo, para alcançar capilaridade e atender o mercado consumidor o BNDES opera por meio da rede de bancos comerciais. Se a nova TLP emparelha com a Selic, ora em queda, nada mais natural os bancos comerciais tirarem o BNDES do caminho, limpando a área da concorrência. É verdade que o contrário também não é descartado. Saem os bancos comerciais, fica o BNDES com o Finame.

Hoje, o tomador do empréstimo paga o funding pela TJLP, de 7%, o spread do BNDES, que é 2%, e o spread do agente privado, de 6%. Na soma, o custo do dinheiro chega a 15%, e, descontada a inflação anual de 3%, chega-se a um juro real de 12% ao ano, o que já é dinheiro muito caro para um negócio que será liquidado em cinco anos. Mário Bernardini, diretor da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq), que o diga. Representante dos interesses de 7 mil empresas, com 1.550 associados que, juntos, respondem por 80% do faturamento do setor e exportam 40% de sua produção para Estados Unidos e Europa, gerando 300 mil empregos qualificados e bem remunerados no país, ele é pragmático:

“Historicamente, o Brasil tem taxas de juros elevadas. Os bancos comerciais cobram pela tomada de capital de giro 50% ao ano e não oferecem linhas de longo prazo. Não porque não queiram, mas porque ganham mais no curto prazo, com a taxa Selic. A margem de lucro líquida das empresas, por sua vez, é equivalente a 6%, 7% do faturamento, em média. Se o custo do empréstimo é superior a essa margem, o investimento não se paga e, portanto, não se realiza. Simples assim. Fizemos as contas. A TLP eleva o custo Finame de 15% para 18%. O investimento produtivo fica inviável.”

Isso se a nova taxa refletir um ambiente de estabilidade econômica, o que não se garante. Como se trata de uma taxa de curto prazo, incorpora a incerteza em sua metodologia. Explica Marcelo Miterhof:

“A TLP é mais volátil que a TJLP e a própria Selic, porque é um título de cinco anos. A Selic é título de um dia, administrado na rédea curta. O BC garante a meta. Para a taxa de cinco anos o BC não garante. O administrador que puser recurso no título de cinco anos corre alto risco. A TLP está mais exposta às respostas do mercado. Transfere para o investimento uma volatilidade meramente financeira.”

Mário Bernardini não alimenta ilusões:

“As grandes empresas vão começar a importar e o índice de nacionalização, que não é uma obrigação, mas uma contrapartida, vai despencar. Mataram o conteúdo nacional, em nome de umapotência monetária absolutamente irrelevante, pois o financiamento do BNDES representa 2,5% do sistema de crédito. A TLP é uma maluquice. É tudo o que o Brasil não precisa, elevar o custo do financiamento a um nível desconhecido. O mercado brasileiro está desenhado para favorecer o rentismo e o ganho financeiro. No exterior, as máquinas e equipamentos podem ser financiados pelos bancos comerciais porque os juros são de 2% ao ano. No Brasil, o financiamento do setor de máquinas e equipamentos, pelo BNDES, é um mal necessário.”

Mal necessário, porque o mercado de ações, ao qual só as grandes empresas têm acesso, no Brasil é tão pequeno que não daria conta de um aquecimento de demanda por recursos, via abertura de capital ou emissão de debêntures, para atender ao desenvolvimento e ao crescimento. Bernardini volta à carga:

“Pequenas e médias ficam de fora. E se todas as grandes fossem recorrer ao mercado de capitais, este não daria conta. É muito pequeno. E por que é pequeno? Mais uma vez, porque a taxa básica dos juros é alta. É atrás dela que vai o investidor. A grande deformação está na taxa básica de juros, não na taxa de investimentos. Quem está fora do lugar é a Selic.”
 


GUERRA SANTA

Contradições e incongruências levam empresários e economistas do BNDES a concluir que as razões para a mudança não são de ordem econômica, mas de cunho ideológico. Mário Bernardini diz que a aprovação da TLP no Senado foi transformada em uma verdadeira guerra santa. Não houve discussão. Não se contabilizou, tampouco, o ganho dos bancos comerciais com a mudança. Nem se eles vão, de fato, cobrir o vazio deixado pelo BNDES com a desidratação do Finame. Trata-se de uma liberalidade de mercado. E tudo dependerá de como o mercado vai reagir aos conflitos bélicos e não bélicos mundo afora, que não são poucos. Um espirro na Coreia do Norte pode gripar de uma só vez todos os chamados países periféricos – sim, eles existem, e o Brasil é um deles.

Na batalha de convicções, neoliberais defendem a liberdade do ganho de capital com unhas e dentes. Os bancos comerciais são sua face mais visível. A presença do Estado, através de bancos públicos, é considerada uma intromissão. Não por acaso, eles estão na alça de mira do governo Temer, cuja receita econômica, de austeridade fiscal, é indiscutivelmente neoliberal.

“Os bancos comerciais perderam muito mercado no governo Dilma. O mar ketshare dos bancos públicos passou de 32% para 52%. Eles querem acabar com a concorrência. Basta olharmos o que estão fazendo com a Caixa e o Banco do Brasil. Estão sangrando. Mas não tenho tanta certeza de que eles estejam felizes com a TLP”, insiste Marcelo Miterhof.

Fernando Nogueira da Costa faz coro: “Trata-se de um oportunismo político, cujo argumento principal é que, sem reformas, não há mercado liberal. Por isso, a correria em implementar o programa, que parte de hipóteses não confirmadas. A primeira delas é a de que o crédito direcionado é muito mais barato que o crédito livre. Alimenta a tese de que o juro alto existe porque existe um juro mais barato, quando, na verdade, o caminho deveria ser o de baixar a taxa primária. Esta é uma visão de curto prazo.”

Thiago Mitidieri, à frente da Associação de Funcionários, arremata:

“O que a gente sabe é que o projeto desta nova geração de economistas é fazer do Brasil um mero exportador de commodities do agronegócio. Mas o país não pode depender só delas. Em ciclos de preços deprimidos, como agora, é um problema econômico. E com a mecanização crescente do agronegócio, minguam os empregos qualificados. O BNDES tem 65 anos. Criar um banco de desenvolvimento não é algo trivial. Não se faz um BNDES do dia para a noite. Mas demolir é rápido.”


FUTUROLOGIA

Afirmar hoje o que vai ser do BNDES, a partir do ano que vem, é puro exercício de futurologia, avisam os economistas ouvidos nesta reportagem da Por Sinal. Muita água ainda vai rolar por debaixo da ponte em um ano eleitoral tensionado pela criminalização e a radicalização da política. O que vai sobrar do banco de desenvolvimento do Brasil ainda é uma incógnita. Pode acontecer de a vigência da nova TLP ser postergada, como já ensaiou sugerir a Febraban, para que as equipes de TI dos bancos comerciais possam se ajustar às mudanças.

A sociedade também pressiona. Excepcionalidades não estão descartadas. Estuda-se, por exemplo, manter a TJLP para as micro e pequenas empresas, que não têm outra opção para viabilizar investimentos. O segmento absorve 30% dos desembolsos do BNDES. As prefeituras endividadas no banco também cobram um tratamento diferenciado, dada a natureza dos investimentos, de interesse público. Os grandes da indústria, por sua vez, parecem com as barbas de molho. Não saíram em defesa do investimento produtivo, como se esperava. Não movimentaram seus lobistas, não pressionaram as bancadas. Economizaram-se.

O debate, porém, está aberto e longe de se esgotar. “Em algum momento, algumas pessoas que não se alinharam ao BNDES vão se arrepender”, acredita o eco nomista Ernani Torres Filho, para quem, a prevalecer a nova regra, metade do BNDES vai embora em dois ou três anos:
 

“O encolhimento é inevitável. Metade do BNDES é de financiamento de até cinco anos. É Finame, venda de máquinas, equipamentos, caminhões e ônibus, por operações indiretas, via bancos, que simplesmente captam o dinheiro do BNDES. Com a Selic baixa, não precisa nem de TLP. Os bancos vão absorver essas operações facilmente. Se der pra praticar a taxa Finame e o cliente é dele, o Itaú des liga o Finame, despluga, vira a chave. Fiz um cálculo: o BNDES, que já foi um banco de R$ 900 bilhões, tenderia a encolher para um estoque de R$ 300 bilhões. Vai fazer o longo prazo e atender à pequena e média empresa, se oferecer um caixa diferente.”

Marcelo Miterhof qualifica a mudança:

“É fácil para o setor privado absorver financiamento de caminhão, que tem a garantia do próprio bem. Hoje ele não faz porque a Selic é muito vantajosa. No dia que for compatível com o padrão internacional de juros, isso muda.”


COFRE FECHADO


Há dois anos na berlinda, sob fogo cruzado, sendo questionado e desafiado a explicar e legitimar sua atuação, o BNDES, na prática, já experimenta um enxugamento. A gestão da executiva Maria Silvia Bastos Marques não deixou boa lembrança. O desembolso da instituição, que em 2014 atingiu a casa dos R$ 188 bilhões, em 2016 caiu para R$ 88 bilhões. O tombo de R$ 100 bilhões deve-se, majoritariamente, à severa recessão que o país atravessa. Mas a ordem de suspender operações e rever critérios e contratos, para investigar irregularidades que, afinal, não se confirmaram, contribuiu para reduzir o BNDES.

A devolução, a pedido do Tesouro, em outubro de 2016, de R$ 100 bilhões que o BNDES tinha em caixa, originalmente programada para daqui a 35 anos, sinalizou a disposição de manter o cofre do banco fechado para o capital produtivo. A antecipação recebeu uma saraivada de críticas à luz da Lei de Responsabilidade melhorar os indicadores fiscais. Seria, portanto, uma pedalada fiscal, da mesma natureza da que justificou o impeachment da presidente Dilma Rousseff.

José Roberto Afonso, economista do Ibre/FGV e professor do Instituto Brasileiro de Direito Público, um dos au tores da LRF, veio a público denunciar a ilegalidade, qualificando a operação de “pedalada de ouro”, em referência à regra de ouro que proíbe o Tesouro de se financiar para arcar com despesas de custeio, um princípio constitucional. “Se essa operação for chancelada pelos órgãos de controle, estará aberto um pre cedente grave, que fere não apenas a Lei de Responsabilidade Fiscal, mas também até o bom senso”, advertiu na imprensa.

O TCU chancelou. Agora, a interpretação é de que a operação atende ao espírito de austeridade da LRF. Tanto que novas devoluções, em parcelas que somam R$ 180 bilhões até 2018, começaram a ser efetuadas para alívio fiscal. O economista Paulo Rabello de Castro, que em maio passado substituiu Maria Silvia na presidência do banco, tenta equilibrar a gestão.

Tão logo assumiu, lançou no mercado o Livro Verde do BNDES, um balanço dos últimos 16 anos, com a intenção clara de derrubar mitos e conter lendas.

Desde a primeira hora, Paulo Rabello saiu em defesa do patrimônio intelectual e moral do BNDES. O humor no banco mudou. Monetarista da velha guarda, Rabello imprimiu seu estilo à administração. No primeiro momento, qualificou a nova TLP de “taxa muito nervosa”. Criticado pelo governo, recuou. O que se comenta é que, embora divirja do ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, não pretende contrapor-se abertamente.

Exercícios de futurologia à parte, é certo que o Brasil repensa o papel de seu banco de desenvolvimento. Se quiser continuar a financiar projetos de alta externalidade, deverá assegurar ao BNDES condições mais favoráveis, a exemplo de seus congêneres mundo afora, como Banco Mundial, BID e KFW, que contam com outros instrumentos para praticar política de fomento. Não pagam impostos e nem distribuem lucros. Entre tributos e dividendos, em 16 anos, de 2001 a 2016, o BNDES recolheu ao Tesouro Nacional R$ 130 bilhões.


 

 


A PONTA DO ICEBERG

 

A aprovação da TLP está em pauta há mais de dez anos e faltou ao corpo técnico do BNDES perceber isso e pensar seu papel dentro de uma economia globalizada pelo capital financeiro. O comentário é do economista Ernani Torres Filho, funcionário de carreira do Banco, para quem a nova taxa é a ponta do iceberg. Integra um pacote que começou a ser implementado nos anos 90. Sua aprovação, mais de duas décadas depois, sinaliza que o país é alvo, hoje, de uma reforma financeira implementada a partir do governo de Fernando Henrique Cardoso. Uma reforma que não se consumou antes por conta dos juros altos e da persistência da inflação. Explica ele:

“Com o Plano Real, o Brasil entrou na globalização. O aspecto mais notório foi o programa de privatização, que não teve nenhum impacto fiscal. O mais importante foram as reformas financeiras. Primeiro a bancária, em 94, quando a Fazenda acaba com a capacidade de governos estaduais controlarem bancos. O Banco Central passou a ter um controle e um acompanhamento de informação sobre as instituições bancárias cavalar. Regulou fortemente o mercado e operou a concorrência para assegurar seu poder monetário e o Estado Brasileiro. No ambiente globalizado, organizou o regime para o dinheiro entrar.”

Depois disso, discorre Torres, veio o ajuste fiscal, capitaneado pelo Tesouro, em 99, que modernizou a dívida pública, reduzindo a cesta de títulos, para adequar o mercado ao padrão internacional, com o apoio do Bird e do FMI. E nos anos seguintes, até 2001, a CVM determinou uma série de ajustes para ordenar o mercado de capitais. Coube ao governo do PT, segundo Ernani, prosseguir no mesmo rumo:

“O governo do PT surfou nas reformas e avançou. A última coisa para fechar era a mudança do regime cambial. Lula liberou a remessa de dinheiro para o exterior, promoveu liberdade cambial, abrindo a conta de capital. O grande boomdo governo Lula foi a entrada de capital externo. Cerca de 70% dos lançamentos de novas ações no mercado vieram com o investidor estrangeiro comprando ativos na nossa moeda, em real. O que ficou atravessado? O juro alto e a inflação alta. O mesmo pacote aplicado no Chile, no Peru, na Colômbia e no México gerou regimes de juros e inflação baixa. No Brasil não deu certo.”

Se a Era Lula logrou êxito em movimentar a economia, com crescimento expressivo do emprego e da renda, produzindo um boom imobiliário e do consumo e uma expansão do crédito bancário que saltou de 27% do PIB, em 2002, para 50% do PIB, oito anos depois, quando deixa a presidência e elege Dilma Rousseff sua sucessora, Lula não equacionou o dilema dos juros altos. As taxas de juros continuaram muito acima das praticadas em países vizinhos como México, Colômbia e Chile, cujo padrão de taxa básica é de um dígito, abaixo de 7%. Continua Ernani:

“Em 2005, o Persio Arida (economista, um dos artífices do Plano Real e da própria TJLP), propõe uma reforma financeira que implica na eliminação de qualquer intervenção do governo no funcionamento do mercado. Acabam todas as taxas que não sejam fixadas pelo BC, ou pelo mercado, que se comunicam. Acabam os incentivos fiscais e de todos os fundos públicos. É o fim do FAT, fim do BNDES. Em um primeiro momento, sugere que o dinheiro do FAT seja leiloado para os bancos, constituindo um fundo financeiro. Outra ideia era transformá-lo em receita do governo, que é o que o Ministério da Fazenda quer; apropriar-se do FAT, dando a ele uma função fiscalista. O FGTS é transformado em fundo desemprego, acabam os penduricalhos de letras de crédito imobiliário e crédito agrícola, e transformam o mercado financeiro em uma geleia homogênea, em que o Estado não tenha atuação microeconômica.”

O economista sustenta que, agora, Banco Central e Ministério da Fazenda não fizeram o trabalho técnico de diagnóstico e desdobramentos da TLP. Para ele, bastava esperar a Selic baixar, o que já vem ocorrendo, mantendo no processo a TJLP e depois, sim, propor uma taxa com patível ao regime de juros baixos.

“A TLP serve a um modelo de taxa de juros baixa, senão destrói o BNDES. Se a taxa de juro for zero não precisa de TJLP  nem de TLP,  nem de BNDES, do jeito que  é hoje. Os bancos vão fazer tudo. Com a taxa alta, preciso de uma taxa menor para fazer política de direcionamento de crédito. O crédito direcionado nos Estados Unidos é 20% do PIB. O FAT do Japão é da ordem de R$ 4 trilhões. Todo mundo faz. O fluxo que o BNDES movimenta não impacta em nada a política monetária. Estão fazendo isso para atender à visão de geleia geral – conclui o  economista.”

 

 



 

 


 

 

 

 

A POLITIZAÇÃO DA JUSTIÇA

 

EDIL BATISTA JUNIOR

 

Denomina-se “ativismo judicial” ou simplesmente “ativismo” quando o juiz ou o tribunal age além do que deveria no campo jurídico, provocando uma interferência na atividade política dos demais poderes da República. A expressão é atribuída ao duplamente vencedor do Prêmio Pulitzer, Arthur Schlesinger Jr., historiador e crítico social norte americano, quando da publicação, em 1947, de um artigo sobre a atuação da Suprema Corte daquele país. 

Como atentamente observa Ionilton Pereira do Vale, doutor em ciências jurídico-criminais pela Universidade de Lisboa, o grande problema na identificação dessa prática reside na dificuldade inerente ao processo de interpretação da Constituição, pois o parâmetro utilizado para caracterizar uma decisão como sendo, ou não, de ativismo judicial reside na controvertida identificação da correta leitura de um determinado artigo constitucional. 

O ativismo tem, igualmente, ferrenhos defensores e críticos. No discurso de posse do ministro Gilmar Mendes na presidência do Supremo Tribunal Federal, em 23/4/2008, o decano da Corte, ministro Celso de Mello, ressaltou o papel do STF como guardião incondicional da Constituição, afirmando que: “Práticas de ativismo judicial, embora moderadamente desempenhadas por esta Corte em momentos excepcionais, tornam-se uma necessidade institucional, quando os órgãos do Poder Público se omitem ou retardam, excessivamente, o cumprimento de obrigações a que estão sujeitos por expressa determinação do próprio estatuto constitucional, ainda mais se se tiver presente que o Poder Judiciário, tratando-se de comportamentos estatais ofensivos à Constituição, não pode se reduzir a uma posição de pura passividade.”

Já o professor de direito da Universidade da Carolina do Norte, nos EUA, William P. Marshall, especialista no tema, com diversas obras sobre ele publicadas, afirma que o ativismo é uma mera recusa dos tribunais em se manter dentro dos limites jurisdicionais estabelecidos para o exercício de seus poderes. Fazendo coro a essa observação, as principais críticas contra o ativismo se fundam no argumento de que os juízes, os tribunais, e mesmo o Supremo Tribunal Federal, não possuem legitimidade democrática para antecipar opções políticas, definir a pauta social ou se insurgir contra atos instituídos pelos demais poderes, que não excedam os limites da legalidade ou da moralidade, por exemplo. 

É importante notar que um único voto de um ministro do STF, ao desempatar questão polêmica, pode tornar sem efeito uma decisão política tomada pelo chefe do Executivo, legitimado por milhões de eleitores, ou desautorizar decisão adotada pelo Congresso Nacional, onde discutem, de forma soberana, os representantes do povo e dos estados. 

Analisando os termos do discurso do ministro Celso de Mello, vê-se que a defesa do ativismo reside na crença de que a Constituição possui uma força normativa própria, que se impõe perante todos os atores sociais, não podendo ficar à mercê das escolhas políticas do governo de plantão. Assim, se os políticos e governantes retardam a implementação dos direitos e garantias coletivos e individuais, o Judiciário deve, de maneira proativa, adotar ações no sentido de consagrar esses valores. Foi o que ocorreu, por exemplo, com a decisão do Supremo Tribunal Federal que, a par da inação do Congresso Nacional em legislar sobre a união homoafetiva, decidiu pela sua possibilidade jurídica, antecipando-se à legislação. 

Note-se que o ativismo judicial não se confunde com a chamada judicialização da política. No primeiro caso, há um ato deliberado de vontade do juiz ou tribunal, supostamente inspirado em princípios constitucionais, que vai além do que as leis estabelecem. No segundo, as decisões do STF decorrem de uma opção dos demais poderes de delegar àquela Corte a competência para definir quais caminhos políticos percorrer, como ocorre, por exemplo, com a discussão da reforma política. Incapazes de chegar a um consenso sobre temas sensíveis relativos à eleição de 2018, o Congresso Nacional optou por aguardar a definição do Supremo Tribunal Federal sobre o que seja lícito e ilícito no que diz respeito à campanha, às coligações, à fidelidade partidária etc.

Em termos práticos, contudo, tanto o ativismo judicial quanto a judicialização da política resultam na mesma realidade: a hipertrofia do Judiciário em relação aos demais poderes. E é aí que reside o maior problema enfrentado pela sociedade: se, por um lado, os excessos dos governantes e parlamentares estão sujeitos ao controle externo por parte do Judiciário, por outro, o mérito das decisões judiciais não está submetido a controle externo algum, mesmo considerada a atuação

do Conselho Nacional de Justiça. É que o CNJ não tem legitimidade para rever decisões tomadas pelos juízes e tribunais. Além disso, é um órgão vinculado ao próprio Poder Judiciário, composto por um número significativo de juí zes (nove entre 15 membros, dentre os quais apenas dois cidadãos representando a sociedade civil). 

Estimulados por esse cenário e contrariando a tese de Celso de Mello, alguns juízes fazem do ativismo não prática excepcional, mas rotina, antecipando decisões pela imprensa, opinando sobre processos de colegas, envolvendo-se em política partidária, validando provas ilícitas, sob o argumento do interesse público etc. Tome-se, por exemplo, o caso do próprio Gilmar Mendes, flagrado pela Polícia Federal em conversas com o senador Aécio Neves, quando da deliberação, pelo Senado, de importante lei que endureceria as punições para autoridades que cometessem abuso, bem como surpreendido pela imprensa em diversas conversas fora da agenda com o presidente da República, onde se discutiu até mesmo sobre a forma de governo a ser adotada no país.

Episódios como esses indicam que, mais do que o ativismo judicial ou a judicialização da política, o que se encontra em curso no país é um processo de politização da Justiça, fenômeno de efeitos deletérios para a democracia, para o equilíbrio dos poderes, e que provoca uma reflexão sobre qual é, na atualidade, e qual deveria ser, em essência, o papel dos juízes e tribunais no Brasil, sobretudo o das Cortes  Superiores. 

Uma avaliação otimista do ativismo indica que os juízes e tribunais atuam no vácuo dos políticos, antecipando discussões importantes para a sociedade ou mesmo implementando políticas públicas, como a questão das pesquisas em célula tronco, além de temas referentes ao aborto voluntário e à possibilidade de prisão de acusados anteriormente ao trânsito em julgado da sentença condenatória. Nessa perspectiva, a atuação proativa do Judiciário teria por objetivo concretizar direitos constitucionalmente previstos, mas nunca implementados, de modo a estabelecer no país um subsistema jurídico minimamente harmônico, diante um sistema social desequilibrado e conflituoso decorrente das diferentes ideologias dominantes. Considerando a existência de um sistema social no qual as diferenças individuais fossem de baixa complexidade, insuficientes para o desequilíbrio das relações humanas, seria razoável crer na possibilidade desse estabelecimento de um subsistema jurídico igualmente harmônico e funcional.     Em um ambiente social altamente complexo e acentuadamente estratificado como o brasileiro, com marcantes distinções e tensões entre sexo, raça, cor, credo, ideologias políticas, condições econômicas etc., é utópica a crença na possibilidade da existência de um sistema jurídico harmônico, capaz de evitar os conflitos oriundos dessa complexidade, bem como solucionar aqueles já estabelecidos. O direito, nesse caso, serve tão somente para evitar que o conflito se prolongue, por meio de decisões judiciais que serão invariavelmente contestadas por uma das partes.

Tomando essa realidade como pano de fundo, uma avaliação pessimista do ativismo vislumbra na atividade o mero exercício da vontade individual dos juízes, que agem como mandatários sem voto, impondo à sociedade uma opção exclusivamente pessoal para a gestão da coisa pública. A jurisdição ativista coloca em risco a própria República, uma vez que as ações políticas do Estado não decorrem mais das escolhas soberanas dos cidadãos, mas do sentimento individual de justiça de profissionais técnicos, não eleitos, imbuídos de ideologias e preferências que não se submeteram ao escrutínio e que, no limite, não se sujeitam a controle externo algum.

O modelo de jurisdição do Direito Romano repercutiu e influenciou todos os sistemas jurídicos que adotaram a lei como padrão de conduta, como os países da Europa Continental e suas respectivas colônias. Originalmente, a jurisdição era o trabalho dos prudentes, cidadãos romanos que, no período da República (507-27 a.C.), eram dotados de autoridade (auctoritas) para dizer o direito (ius dicere), mas não para aplicá-lo, missão a cargo dos pretores, uma espécie de magistrado romano.

O pretor detinha o poder (potestas) de resolver os conflitos pelos editos, mas se socorria dos prudentes para auxiliá-los nessa tarefa. Através das responsas, os prudentes atuavam como jurisconsultos, formando um acervo intelectual poderoso. A atividade dos prudentes não era remunerada, tinha o caráter de múnus público, como o voto.

Quando Roma se tornou Império (27 a.C. – 476 d.C.), o imperador Augusto concedeu a alguns prudentes afeiçoados ao novo regime o ius respondendi ex autoritate principis (que pode ser traduzido como “resposta jurídica com a autoridade do príncipe”), o que tornava a opinião do juris consulto de observância obrigatória. Quando o imperador Justiniano (527 d.C. – 565 d.C.) tentou restabelecer todo o antigo esplendor de Roma, então dividida e, em parte, já sob as mãos dos povos germânicos, determinou que fosse consolidado o melhor direito até então criado pelos prudentes clássicos, tais como Paulo, Gaio, Ulpiano e Modestino. Astuto, Justiniano não adotou as manifestações dos prudentes da época imperial, porque sabia que essas opiniões estavam maculadas com o viés político dos imperadores que o antecederam.

Essa obra jurídica portentosa, denominada posteriormente de Corpus Juris Civilis, serviu para a formação dos juristas modernos europeus, a partir do século XI, influenciando até a atualidade todo o estudo e a aplicação do direito civil. Como se vê, embora desprovidos de potestas, os prudentes romanos clássicos detinham e ainda detêm a auctoritas necessária para a adesão dos estudiosos do tema, contribuindo para a feitura das leis que regem o dia a dia do cidadão.

Na contramão do modelo clássico de jurisdição romana, o atual ativismo judicial praticado no Brasil, nomeadamente aquele oriundo do Supremo Tribunal Federal, é cada vez mais similar aos atos imperiais, dotados de poder e de vinculatividade, isto é, de observância obrigatória por todos os cidadãos e pelos demais poderes, mas esvaziados de autoridade e de legitimação social. A politização do Judiciário começa a desnudar aquele Poder e a mostrar ao cidadão comum que os juízes também têm ideologias partidárias e que estão igualmente sujeitos à corrupção, como os demais políticos e governantes. Veja o recente caso envolvendo um desembargador federal da 5ª Região, no Recife, preso em sua residência sob a acusação da venda de decisões. A toga, portanto, não é sinônimo absoluto de honestidade e retidão de caráter, embora se reconheça que seja uma minoria que se deixa contaminar por desvalores sociais.

No início do século XX, o doutrinador francês Edouard Lambert assinalou a existência de um governo de juízes nos Estados Unidos da América, por ocasião da análise que fez do controle de constitucionalidade das leis. A ideia é a de que quem dá a última palavra sobre o que pode ou não pode ser legal é quem efetivamente governa. O controle dos atos do legislador pelo Judiciário é, por um lado, salutar, faz parte do modelo de Estado pensado pelos filósofos contratualistas e pode evitar a edição de leis e decretos abomináveis, tais como os proferidos na Alemanha, durante a perseguição ao povo judeu. Por outro lado, se já é problemático quando o juiz ou tribunal age como governante, por não ter legitimidade popular, imagine-se a dimensão do problema quando eles agem como verdadeiros imperadores, por meio de decisões guiadas por mera ideologia política, sem amparo legal/constitucional e que não se sujeitam a qualquer controle externo.

Giambattista Vico, pensador italiano, afirmava que a humanidade vive uma história cíclica de fluxos e refluxos. Essa teoria ajuda a entender o fato de que, ao longo dos tempos, a sociedade se depara com a tentativa de um dos poderes do Estado submeter os demais. Anteriormente ao advento do Estado Moderno, a harmonia social estava sujeita ao jugo de um soberano (Executivo) que concentrava todo o poder em si e a harmonia do quadro social dependia exclusivamente da sua habilidade de governar. A partir do renascimento, e sobretudo do iluminismo, a busca da harmonia social se deu com a substituição do regime absolutista pelo Parlamentarismo (Legislativo), com a ascensão da soberania popular e sua materialização no instrumento legal. No final do século XIX, e mais especificamente a partir das duas Grandes Guerras no século XX, constatou-se que a lei poderia ser um instrumento de desagregação social, por ser iníqua. A soberania popular materializada na lei encontrou um limitador: o controle de constitucionalidade. O Parlamento cedeu espaço ao Judiciário que, fortalecido, passou a definir o que é socialmente certo e errado.

Sem limites, contudo, é possível antever que o Judiciário seja apenas outra peça nessa histórica engrenagem de moer os cidadãos. Há que se buscar freios para a sua atuação, portanto. Evitar a politização daquele Poder não é uma escolha aleatória, é uma condição para a democracia. A definição do justo e do injusto já é monopólio do Judiciário. Na atualidade, a jurisdição é muito mais ato de poder do que de autoridade. A sociedade se torna cada vez mais complexa e o direito exaure suas condições de pacificar os conflitos. Se desenfreada, a atuação política dos juízes e tribunais consolidará de vez uma ditadura dos togados. A quem se recorreria nesse cenário? Ao Papa?

(*) EDIL BATISTA JUNIOR é doutor em direito pela UFPE, professor da UNINASSAU/Recife, procurador do Banco Central do Brasil e membro do Conselho Editorial da Por Sinal.



 


 

 

 

ENTREVISTA PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL DA BOL͍VIA
Um Banco Central a serviço da cidadania
 

Iniciamos nesta edição uma série de entrevistas com presidentes de bancos centrais da América do Sul buscando saber como avaliam o atual cenário econômico mundial, quais medidas monetárias, cambiais e financeiras têm sido adotadas para manter equilibrada a economia nacional e, principalmente, o que esperam para o futuro que se apresenta. Sustentabilidade, comunicação com a sociedade, educação financeira e relacionamento com seus funcionários também são temas abordados. O primeiro entrevistado é Pablo Ramos Sánchez, presidente do Banco Central da Bolívia, país que fechou 2016, pelo quarto ano consecutivo, com crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) - 4,2% - e prevê para 2017 outra alta da ordem de 4,8%. Com inflação controlada, na casa dos 3,5%, taxa de juros em torno de 3,0% e de desemprego em 7,5%, a Bolívia espera continuar sendo um modelo de crescimento para a sua região (*). Esperamos que estas entrevistas venham a servir para que possamos ter uma visão mais ampla do que ocorre com nossos vizinhos próximos, países com economias incomparáveis, por dimensão de negócios e extensão territorial, com a do Brasil, mas que por certo têm posicionamentos interessantes que podem contribuir para a compreensão do que ocorre em nosso continente.

 



 

Como analisa o atual cenário econômico mundial, em termos de estabilidade, ante a crise de 2008 nos Estados Unidos e, em particular, nas economias dos países da América do Sul? O que devemos esperar em um futuro próximo?

A crise de 2008 afetou todos os países, causando vários tropeços nas atividades financeiras. Ante esse ciclo econômico recessivo, a Bolívia respondeu com uma política contracíclica. Enquanto os demais bancos centrais e estados adotaram políticas pró-cíclicas, efetuando restrições ao crédito e à base monetária ao elevar as taxas de juros, nós utilizamos um mecanismo contrário: diminuímos as taxas de forma significativa, com o propósito de manter os níveis de crédito elevados para deixar a economia permanentemente abastecida com os meios necessários para levar adiante os programas de investimento. Dessa maneira, continuamos investindo nas obras de infraestrutura (que foram a base para o desenvolvimento econômico do país nesta última década), e mantivemos as políticas sociais (bônus para crianças, idosos e mulheres gestantes) e as transferências que o Estado faz dos setores mais abastados para os setores carentes. Nesse sentido, enfrentamos a crise através de uma política inversa às recomendações da economia ortodoxa, mantendo uma política monetária expansiva para que o crédito pudesse fomentar o investimento de forma permanente.

Embora em 2016 a taxa de crescimento mundial tenha sido a mais baixa desde a crise financeira, acreditamos que nos encontramos em um ponto de inflexão, estimando-se uma recuperação a partir de 2017. Na realidade, a atividade econômica mundial alcançou um relativo crescimento nos primeiros meses do ano, especialmente nas economias mais desenvolvidas, com destaque para o aumento nos investimentos. Esse comportamento foi comprovado pelos indicadores de confiança e pela atividade do setor de manufatura, assim como pelo melhor desempenho do comércio internacional e pela recuperação parcial dos preços internacionais  das matérias-primas. 

 

Espera-se da autoridade monetária medidas que promovam a estabilidade de preços e o crescimento econômico. Como se pode resolver a contradição entre a manutenção da estabilidade monetária e do controle da inflação com a melhoria da oferta de empregos, por exemplo?
O mandato constitucional do Banco Central da Bolívia (BCBo) é “manter a estabilidade do poder de compra interno da moeda nacional para contribuir com o desenvolvimento econômico e social”. Nesse contexto, a política monetária procede com cautela, ao permitir maiores impulsos internos que possam sustentar o crescimento econômico sem gerar pressões inflacionárias. Isso foi conseguido mediante a coordenação de políticas do BCBo com o Poder Executivo, o que tem sido determinante para alcançar esses objetivos. Assim, anualmente, é assinado o Acordo de Decisão de Execução do Programa Fiscal-Financeiro, no qual são estabelecidos os objetivos de crescimento, inflação e deficit fiscal.

A manutenção do câmbio estável promoveu uma inflação em níveis controlados, o que, por sua vez, permitiu manter uma política monetária expansiva desde meados de 2014. Isso foi feito ao contrário das ações dos demais países da região, onde as desvalorizações cambiais pressionaram os preços internos e, portanto, as políticas monetárias restritivas em um contexto de desaceleração. 

 

No Brasil, uma das preocupações do Banco Central é melhorar a comunicação com o público, buscando ampliar a interação no contexto de proteção ao consumidor, assim como divulgar sua política monetária. Como é feita a comunicação entre o BCBo e a sociedade de seu país?

Até 2006, o BCBo tinha pouco contato com a população e sua comunicação era direcionada a um conjunto limitado de autoridades nacionais, através da Memória Institucional. Essa publicação tinha periodicidade anual, e seu conteúdo se restringia a descrever o desempenho econômico da gestão anterior e suas demonstrações  financeiras.

A partir dessa data, a instituição passou a criar diferentes me canismos e espaços de interação com a sociedade civil, priorizando o diálogo direto e transformando-se em uma entidade pioneira na geração contínua de mecanismos exitosos para esse propósito, que se fortaleceram e se sustentaram ao longo do tempo.

Atualmente, o BCBo é reconhecido por ser uma entidade aberta, que busca a interação da população de diferentes idades sem nenhuma distinção. Crianças, jovens e adultos participam das atividades do banco, da mesma forma que profissionais, associações e organizações sociais. Além disso, a linguagem e os instrumentos de comunicação da entidade foram adaptados para que a população em geral pudesse compreender as mensagens que ela transmite. 

Dentro desse conjunto de atividades inclusivas, temos a divulgação do informe de política monetária, prestação pública de contas perante a sociedade civil, jornadas monetárias, encontros de economistas da Bolívia, concursos de monografia e teatro escolar, participação em feiras, socialização dos benefícios gerados pela utilização da moeda nacional, cursos para jornalistas, divulgação do informe de estabilidade financeira e seminários elaborados a partir de solicitações, entre outras.

Essas ações permitiram melhorar a compreensão das tarefas e atividades do BCBo, com ampla participação da cidadania, o que não só contribuiu para o cumprimento das obrigações constitucionais de inclusão, responsabilidade, transparência e prestação de contas, como também posicionar as políticas propostas pelo ente emissor.

Da mesma forma, mediante a nova Lei de Serviços Financeiros, fica estabelecida a obrigatoriedade, para as entidades que atuam nessa área, de criar, organizar e executar programas de educação financeira. Nesse sentido, o BCBo conta com o Programa de Educação Econômica e Financeira (PEEF), dentro do qual está prevista a coordenação interinstitucional entre o Ministério de Economia e Finanças Públicas e a autoridade de supervisão do sistema financeiro para desenvolver uma estratégia nacional de educação econômica e financeira, com o objetivo de difundir conhecimentos nessa área, a fim de contribuir com o desenvolvimento econômico e social do país. 

 

Quais são as preocupações atuais com o sistema financeiro?

O sistema financeiro boliviano vem experimentando, há mais de dez anos, um crescimento sustentável, no qual se destacaram o incremento dos créditos e melhor utilização da moeda nacional. Também se evidencia sua solidez, espelhada na taxa de juros mais baixa da região. Nesse sentido, não há preocupações importantes relacionadas ao sistema financeiro. Entretanto, o monitoramento preventivo, macro e micro, a inclusão financeira e a implementação da nova Lei do Sistema Financeiro são tarefas contínuas e constantes.


Qual é o grau de concentração dos ativos dos bancos? A situação traz preocupação no que se refere a custos financeiros para os clientes e, portanto, para a economia como um todo?

O sistema de intermediação financeira boliviano é heterogêneo em sua composição e conta com bancos múltiplos, bancos PYME (Pequenas e Médias Empresas), entidades financeiras de habitação, cooperativas e instituições financeiras de desenvolvimento (60 entidades). Em 30 de abril de 2017, 92% do total de ativos correspondiam ao sistema bancário (17 entidades). Os custos financeiros dos clientes se mantêm em níveis controlados, resultado da regulação das taxas ativas de juros, de acordo com a Lei nº 393 e com os Decretos Supremos nº 1.842 e nº 2.055, que estabelecem taxas máximas dos créditos para a habitação de interesse social e para o setor produtivo.
 

Quais são as estatísticas da bancarização e da inclusão popular no sistema financeiro? O BCBo tem a intenção de atuar para elevar o nível dos serviços bancários para a população?

A Lei de Serviços Financeiros estabelece que o sistema financeiro deve cumprir uma função social e, portanto, a inclusão financeira é um de seus pilares. O BCBo regula o sistema financeiro levando em consideração os princípios dessa lei, inclusive no que se refere à inclusão. Nos últimos anos, foi registrado um significativo crescimento desses indicadores na Bolívia. O número de contas de depósito e de empréstimos quase duplicou entre dezembro de 2010 e março de 2017. As mulheres representam 38% dos empréstimos, e 52% correspondem a pequenos e micro tomadores.
 

Da mesma forma, a infraestrutura mediante a qual as entidades de intermediação financeira prestam seus serviços à população, e a cobertura das agências bancárias por município registram uma tendência de crescimento.

O número de cartões de débito e crédito também aumentou, passando de 2,1 milhões de cartões de débito, em dezembro de 2011, a 3,8 milhões, em março de 2017 (equivalente a 39% das contas de depósito), e de 89 mil cartões de crédito a 126 mil no mesmo período (equivalente a 2,2% da população economicamente ativa).
 

No Brasil existe uma compreensão, especialmente nos últimos anos, de que por meio da educação financeira é possível difundir o uso adequado do dinheiro para que as pessoas não gastem além das suas possibilidades. Como o tema da bancarização é trabalhado no seu país?

Antigamente, o uso do sistema bancário estava restrito a setores minoritários. Isso gerava uma alienação generalizada dos setores populares, resultando na preferência pelas transações em dinheiro vivo. Há algum tempo, porém, o BCBo tem tomado medidas e ações de aproximação entre o sistema financeiro e a população, combatendo a centralização do poder econômico. Como exemplo, existe uma utilização crescente de cheques e de mecanismos de dinheiro eletrônico, como o uso de cartões de crédito. Da mesma maneira, a prestação de contas não está restrita somente à capital ou à sede de governo do país, mas também às cidades importantes das diferentes regiões da Bolívia. Para o BCBo, educação financeira é uma tarefa prioritária, porque permite envolver a população com o sistema financeiro e, assim, aproximar as instituições bancárias aos setores sociais mais carentes, que se encontram em contínuo crescimento. Nesse sentido, o banco organiza periodicamente atividades educativas que envolvam a população, tais como concursos, atividades culturais, teatrais, etc. Os principais eixos abordados são: o cuidado e a valorização do dinheiro e como diferenciar as cédulas verdadeiras das falsas, uma vez que, como em diversos países, sofremos permanentemente com essa prática criminosa. Assim, a educação financeira é um pilar para a nossa instituição, pois temos por objetivo convencer os setores historicamente marginalizados, os movimentos sociais e a população em geral sobre a necessidade de recorrer ao sistema bancário.

Finalmente, também é um tema da cooperação internacional, pois permite o intercâmbio de experiências em matéria de educação financeira. Consideramos, entretanto, que ainda existe muito trabalho a ser feito, tanto nacional quanto internacionalmente.


Como são selecionados e remunerados os funcionários e dirigentes do BCBo?
Os funcionários do BCBo são selecionados de acordo com o estabelecido pelas Normas Básicas do Sistema de Administração de Pessoal (NBSAP) da Bolívia, aprovadas pelo Decreto Supremo nº 26.115, sob as seguintes modalidades: convite direto ou concurso público.

Convite direto – a pessoas que reúnam altos méritos pessoais e profissionais, para cobrir postos exercidos por funcionários nomeados, como gerentes, subgerentes e assessores.

Além disso, o BCBo está composto por um presidente e cinco diretores, que são escolhidos entre listas tríplices propostas pela Assembleia Legislativa Plurinacional (ALP) para cada um dos cargos, tal como estabelecido pelo artigo 239 da Constituição Política do Estado (CPE).

Concurso público – os processos de recrutamento e seleção de pessoal são realizados mediante concursos públicos internos e/ou externos, que se aplicam aos postos de nível de chefia de departamento, de forma descendente, até o nível mais baixo da estrutura hierárquica do BCBo.

Concurso interno – dirigido a funcionários da entidade, com a finalidade de promoção vertical.

Concurso externo – Aberto à participação tanto de funcionários da entidade como de pessoas fora dela.


Qual é a relação entre a remuneração dos funcionários do BCBo e a de outros servidores do Estado?
Os salários dos funcionários do BCBo, assim como os dos servidores públicos das demais repartições do Estado, são regulados por Decreto Supremo, com limitações para cada setor. No caso do BCBo, a remuneração do presidente não deve ser igual ou maior do que a de um vice-ministro de Estado, e a dos servidores públicos da instituição é aprovada pelo Ministério da Economia e Finanças Públicas.

(*) Respostas do Banco Central da Bolívia (BCBo) para a revista Por Sinal, produzida por Juan Orgaz Espinoza, com apoio técnico de Willy Ancelmo Maydana, realizada em 1º de junho de 2017, na sede central do BCBo, na cidade de La Paz, Bolívia.




 

 

 


 

 

OS TRÊS PODERES E O DESMONTE DO ESTADO
 

 

 


POR ANTONIO AUGUSTO DE QUEIROZ*



 

A efetivação de Michel Temer – ao contrário do que o senso comum imagina, influenciado por notícias sobre divergências pontuais entre autoridades dos três poderes e órgãos de controle resultou num arranjo em que os poderes cooperam e até dividem tarefas e atribuições na implementação da agenda do novo governo. Nesse novo arranjo, parece haver uma ação harmônica entre os poderes, numa espécie de distribuição de tarefas entre as instituições estatais, de tal modo que cada um deles

cuida de aspectos específicos, porém complementares.

Ao Poder Executivo competiria fazer a coordenação geral e cuidar, especialmente, do aspecto fiscal (corte de despesas e aumento de receitas extraordinárias); ao Legislativo competiria contribuir para a melhoria do ambiente de negócio (suprimir ou flexibilizar direitos, rever marcos regulatórios na economia e abrir a economia ao capital privado nacional e estrangeiro); e ao Judiciário, com seu ativismo judicial, contribuir com a missão dos dois outros poderes.

Nesse diapasão, o Poder Executivo tem centrado sua atuação e prioridade na pauta fiscalista, tendo proposto ou apoiado as seguintes iniciativas:

  1. aprovação da Emenda à Constituição (EC) nº 93, que prorroga a desvinculação de receitas da União e estabelece a desvinculação de receitas dos Estados, Distrito Federal e Municípios (DRU); (Aumento da DRU para 30%)
  2. apresentação e aprovação da EC nº 95, que institui o Novo Regime Fiscal, e dá outras providências (Congelamento do gasto público por 20 anos);
  3. apresentação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 287/2016, que trata da reforma da Previdência, e modifica, para pior, os três fundamentos do benefício:
    1. a idade, que aumenta b) o tempo de contribuição, que aumenta, e c) o valor do benefício, que reduz;
       
  4. aprovação e sanção da Lei nº 13.291/2016, que altera a meta fiscal de 2016 (que instituiu a regra de congelamento, em termos reais, do gasto público, antes mesmo da E.C 95);
  5. regulamentação da Lei nº 13.254/2016, que tratou da repatriação de recursos;
  6. edição da Medida Provisória (MP) nº 746/2016, sancionada como Lei nº 13.415/2017, que trata da reforma do médio;
  7. propor a mudança da meta fiscal para 2017 e 2018; Em relação ao servidor público, propôs:
  8. apresentação e aprovação da Lei Complementar nº 156/2016, que dispõe sobre a renegociação de dívidas dos estados com a União e a possibilidade de privatização de empresas públicas e o congelamento de salário de servidores estaduais;
  9. apresentação e aprovação da Lei Complementar 159/2017, que trata da recuperação fiscal dos estados com venda de empresas públicas
  10. Programa de Demissão Incentivada (PDV) no serviço público, com licença incentivada e redução de jornada com redução de salário (MP nº 792/2017);
  11. adiamento/cancelamento dos reajustes previstos para 2018 de 23 categorias e não previsão de novos reajustes;
  12. reestruturação de carreiras com ajustes para fixação de salário inicial em R$ 5 mil, além de revisão de pagamentos de verbas como auxílio-alimentação;
  13. ampliação e adoção da terceirização no serviço público, notadamente em estatais;
  14. elevação da contribuição previdenciária dos servidores públicos, de 11% para 14%;
  15. suspensão de concursos;
  16. dispensa por insuficiência de desempenho PLP 248/1998 na Câmara, que se aprovado vai à sanção;
  17. privatização, para fazer caixa, da Eletrobras, dos Correios e da Casa da Moeda, entre outras estatais estratégicas;
  18. novo Refis para fazer caixa, punindo o contribuinte que paga seus impostos em dia.

O Poder Legislativo, por sua vez, priorizou a apresentação ou votação de propostas que contribuam para a chamada melhoria do ambiente de negócios, revendo marcos regulatórios, abrindo a economia ao setor privado e acelerando a deliberação sobre a flexibilização de direitos trabalhistas, cabendo destacar:

  1. Lei nº 13.299/2016, com mudanças nas regras de concessões para facilitar leilões e concessões públicas de energia elétrica;
  2. Lei nº 13.303/2016, dispondo sobre o Estatuto Jurídico da Empresa Pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias nos três níveis de governo. Pôs fim à representação sindical e abriu a possiblidade de indicações políticas para compor o conselho de administração de empresas públicas e sociedades de economia mista;
  3. edição da MP nº 727/2016, sancionada como Lei nº 13.334/2016, que cria o Programa de Parcerias de Investimentos (PPI);
  4. edição da MP nº 735/2016, sancionada como Lei nº 13.360/2016, que altera várias leis relativas aos marcos regulatórios de energia elétrica no Brasil;
  5. Lei nº 13.365/2016, dispondo sobre o fim da Petrobras como operadora única na exploração do petróleo na camada do Pré-sal;
  6. edição da MP nº 744/2016, sancionada como Lei nº 13.417/2017, que revogou o caráter público da Empresa Brasileira de Comunicação, retirando sua autonomia frente ao Poder Executivo, para favorecer a comunicação privada;
  7. votação e sanção da Lei nº 13.429/2017, que trata da terceirização na atividade fim da empresa;
  8. edição da MP 767/2017 e sanção como Lei nº 13.457/2017, que concede gratificação de desempenho de atividade de perito médico previdenciário e altera benefícios do INSS com destaque para o ato de concessão ou de reativação do auxílio-doença com fixação de prazo estimado para a duração do benefício.
  9. votação e sanção da Lei nº 13.476/2017, sobre a reforma trabalhista, que reduz custos do empregador, facilita a precarização das relações de trabalho, amplia o lucro e a competitividade das empresas e enfraquece a representação sindical, além de:
    9.1) restringir o acesso à Justiça do Trabalho,
    9.2) retirar poderes e atribuições dos sindicatos,
    9.3) ampliar a negociação coletiva sem o limite ou a proteção da Lei,
     
  10. adoção de novos modelos de contratos de trabalho, em especial: o autônomo exclusivo e o intermitente; e
  11. edição da MP 793/2017, que faz concessões tributárias aos ruralistas;

O Poder Judiciário, nessa mesma linha, julgou no STF várias matérias em sintonia com a agenda do novo governo: 

  1. fim da desaposentadoria. (RE 381.367, 661.256 e 827.833);
  2. desconto dos dias parados em caso de greve de servidor (RE 693.456);
  3. fim da ultratividade de normas de acordos e de convenções coletivas. Necessidade de um novo acordo coletivo para revogar o anterior (ADPF 323);
  4. quitação plena dos Programas de Desligamento Voluntário (PDV) ou Programa de Demissão Incentiva (PDI) (RE 590.415); e
  5. prevalência do negociado sobre o legislado em relação as horas in itinere (RE 895.759).

A consequência desse arranjo, em torno da agenda neoliberal, resultará na revisão do papel do Estado brasileiro, que se voltará mais para garantir o direito de propriedade, assegurar o cumprimento de acordos e honrar os compro missos com os credores das dívidas interna e externa, além de contratar serviços nas áreas de saúde, educação e segurança no setor privado, do que para corrigir desigualdades, regionais e de renda, promover inclusão social, prestar serviços públicos de qualidade e formular políticas públicas de interesse social.

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em artigo no jornal O Globo do dia 5/2/2017, afirma que “adotar políticas que favoreçam mais ao capital do que ao trabalho, ou vice-versa, depende da orientação política do governo”. E o governo Temer, cuja agenda foi apropriada pelo capital, comprova o que afirma FHC.
 

(*) Jornalista, analista político e diretor de Documentação do Diap.