003 2003 2014
A cada quatro anos, o Brasil vive um que se difere dos demais. Ao final do carnaval, que para muitos simboliza o início, de fato, do ano, sucedem-se a Copa do Mundo de futebol e as eleições gerais. Somando-se às já famosas festas juninas, de presença obrigatória para nossos parlamentares, e o recesso de julho do Congresso Nacional, so bra pouco tempo para um governo, em final de mandato, promover as medidas necessárias para levar o país a um caminho virtuoso.
Nesta edição da Por Sinal, deixando de lado a peculiaridade deste 2018, procuramos trazer à discussão matérias que sejam relevantes não só aos servidores públicos, mas também à sociedade brasileira como um todo.
Afinal, se a reforma do Estado
proposta pelo Banco Mundial atinge em seu primeiro momento os servi- dores,
acusados de serem os responsáveis pela crise fiscal do país, suas consequências,
que passam por um verdadeiro desmonte dos serviços públicos, atingirão a todos
aqueles que direta ou indiretamente deles dependam, com mazelas maiores aos
menos favorecidos economicamente.
Apresentamos, ainda, artigo de Edil Batista Júnior, doutor em
Teoria Geral do Direito, professor da Uninassau, em Recife (PE), e conselheiro
editorial da Por Sinal, que trata sobre a Constituição Federal brasileira, o
Direito Constitucional eo distan- ciamento entre o mundo normativo e o mundo
real.
SINDICATO NACIONAL DOS FUNCIONÁRIOS DO BANCO CENTRAL (SINAL)
CONSELHO NACIONAL BIÊNIO 2017/2019
Presidente Fortaleza
DIRETORIA EXECUTIVA NACIONAL BIÊNIO 2017/2019
Presidente
Diretor de Estudos Técnicos
EXPEDIENTE ANO 16 NÚMERO 57 JUNHO 2018
Por Sinal Revista do Sindicato Nacional dos Funcionários do Banco Central do Brasil
Conselho Editorial
Daro Marcos Piffer, Edil Batista Júnior, Epitacio da Silva
Ribeiro, Jordan Alisson Pereira, Maria Juliana Zeilmann Fabris, Nehemias
Monteiro Júnior, Paula Castello Branco Teklenburg e Paulo Lino Gonçalves.
Secretária: Sandra de Sousa Leal SCS Quadra 01 – Bloco G sala 401 – Térreo Ed. Baracat – Asa Sul – Cep 70.309900 – Brasília – DF Telefone: (61) 33228208 Contato com a Por Sinal: porsinal@sinal.org.br
Redação Coordenação geral e edição: Flavia Cavalcanti (Letra Viva Comunicação)
Reportagem: Jefferson Guedes, Verônica Couto e Carmen Nery
llustrações: Claudio Duarte
Assessoria de Comunicação do Sinal Nacional: Rapport.
Permitida a reprodução das matérias, desde que citada a fonte. O Conselho Editorial não se responsabiliza pelas opiniões expressas nos artigos assinados.
Reforma do Estado
JEFFERSON GUEDES
(Ver gráfico 1, abaixo)
A leitura desses números mostra que o problema não está nos “altos salários”, e
sim na baixa remuneração de 60% dos servidores. E como se enfrenta esta
desigualdade? Com a valorização do funcionalismo, entendida aqui como premissa
para uma melhor qualidade do serviço público ofertado à população.
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Crise Fiscal VERÔNICA COUTO
Governadores e prefeitos pressionam
deputados para aprovar na Câmara o Projeto de Lei Complementar 459/17, que
autoriza estados, municípios e a União a venderem o direito sobre créditos
que tenham a receber, de origem tributária ou não (como é o caso, por
exemplo, dos créditos resultantes de privatizações). No inicio de abril, o
presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), encontrou-se com os
governadores do Distrito Federal, Rodrigo Rollemberg; de Minas Gerais,
Fernando Pimentel; do Rio de Janeiro, Luiz Fernando Pezão; do Piauí,
Wellington Dias; e o vice-governador de Goiás, José Eliton. Na mesa, a
discussão do Projeto de Lei, de autoria do senador José Serra (PSDB-SP), que
aguarda o parecer do relator na Comissão de Finanças e Tributação (CFT),
deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR), para depois ser analisado pela
Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania e, por fim, submetido à
votação em Plenário.
O diretor de Estudos Técnicos do Sindicato Nacional dos Funcionários do Banco Central (Sinal), Daro Piffer, acredita que, de fato, a cessão de direitos sobre créditos “pode ser um instrumento para os governos conseguirem dinheiro mais rapidamente”, mas o PLP 459, na redação atual, apresenta problemas, especialmente no que se refere às formas de controle externo das operações. “Com relação ao princípio, o Sinal não é contra. Seria preciso, porém, acrescentar-lhe algumas salvaguardas não previstas no texto”, questiona.
INTERMEDIÁRIAS SEM CONTROLE O projeto também recebeu críticas de
representantes de entidades como a Auditoria Cidadã da Dívida (ACD), o
Sindicato dos Procuradores da Fazenda (Sinprofaz) e a Associação Nacional
dos Auditores Fiscais da Receita (Anfip). Segundo esses especialistas, a
transferência dos depósitos referentes à arrecadação tributária do poder
público para bancos ou fundos privados pode levar os governos a grande
endividamento e à perda do controle sobre a gestão dos orçamentos públicos. A Frente Parlamentar Mista pela Auditoria da Dívida Pública com Participação Popular reuniu-se em março para discutir o PLP e estratégias para impedir a sua aprovação. “Imagina que uma pessoa faz uma compra a crédito, em 12 parcelas descontadas diretamente do seu salário, na folha de pagamento, e o banco ainda recebe um ágio, que pode chegar a 60%. É isso que o PLP 459 faz com a arrecadação dos créditos dos estados ou municípios”, afirma o senador João Capiberibe (PSB-AP), presidente da Frente Parlamentar. Ele chama a atenção para o fato de a proposta não estabelecer qualquer limite para o ágio acordado com o banco, além de pretender legalizar a cessão dos créditos já negociados e com garantias de que serão pagos, geridos por um modelo de estatal não dependente, criada com propósito específico, que não está sujeita a nenhum tipo de controle. “Os governos vão negociar créditos que eles têm certeza de que vão receber, dando uma parte para essas empresas sem controle, e o grosso para o banco, que ainda cobra o ágio astronômico para receber um dinheiro certo.”
Estabelecer um limite a priori para o desconto no valor da dívida, contudo, pode ser muito difícil, explica Daro. “Se compararmos dívidas de impostos não pagos de corporações que já saíram do mercado, como a Varig, por exemplo, com aquelas de empresas que estão faturando e em operação, é claro que os riscos de não recebimento são diferentes, muito maiores no caso das empresas que já fecharam. Não podem, assim, serem negociadas pelo mesmo valor.” Para evitar abuso no deságio, o diretor do Sinal propõe que o projeto impeça a cessão dos direitos sobre os créditos para qualquer pessoa jurídica de direito privado, permitindo as operações “única e exclusivamente” com fundos de investimentos criados para esse fim, para garantir maior governança e transparência.
Ele destaca que a venda de dívidas é uma atividade “normal” no sistema financeiro privado. “Alguém tem uma dívida a receber, mas precisa do dinheiro antes do prazo de vencimento, como ocorre com uma duplicata de 30 dias. Pode vender o direito de cobrar essa dívida para um banco, recebendo por isso um adiantamento, com deságio, em função do adiantamento e da transferência do ônus de cobrar a duplicata”. Mas, quando esse processo envolve direitos de créditos muito altos, diz Daro, é realizado por meio de um fundo específico, o Fundo de Investimento em Direitos Creditórios (FIDC). Esses fundos envolvem risco e são destinados aos chamados investidores qualificados, com investimento mínimo a partir de R$ 25 mil e patrimônio declarado de R$ 1 milhão aplicados.
“No caso do PLP 459, o governo deveria autorizar a criação de fundos de investimento em direitos creditórios públicos, um FDIC de dívida pública, para não misturar dinheiro público com privado, e deixar claro para o investidor que aquele fundo é todo formado por dívida pública”, afirma o diretor do Sinal. Ao contrário das “empresas estatais não dependentes”, que não estão sujeitas a controle externo, os fundos são regulados e fiscalizados pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), e seus recursos só podem ser utilizados para pagar despesas inerentes à atividade básica de comprar e vender os direitos dos créditos. Outras despesas ficam por conta do seu administrador.
Permitir que a cessão de direitos creditórios seja feita por meio de sociedade de propósitos específicos, como está no projeto, é “onde mora o perigo”, alerta Daro. Ele lembra que a crise de 2008 surgiu de empresas desse tipo, criadas pelos bancos para negociarem títulos referentes aos seus empréstimos habitacionais. “Os bancos emprestavam para o sistema habitacional, sem critério. Quando tiveram problema de não pagamento, para limpar seus balanços, criaram essas sociedades de propósito específico, que compravam as dívidas – que dificilmente seriam pagas – e lançavam debêntures baseadas nelas, com prazos mais longos de vencimento. Em algum momento, essas sociedades não tiveram mais como pagar os investidores e os bancos puderam bancar as garantias. Ou seja, a ocultação da inadimplência por meio da transferência das dívidas para as sociedades de propósito específico foram as grandes responsáveis pela crise.”
BLINDAGEM JURÍDICA A “securitização” da dívida já vem sendo feita em cidades como Porto Alegre, Belo Horizonte, Recife, Salvador, Nova Iguaçu e nos estados de Goiás, São Paulo, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro. Em todos esses casos, as empresas estatais criadas para gerir o processo enfrentaram ações judiciais, questionamentos ou vetos dos órgãos reguladores – Ministério Público de Contas e tribunais de contas estaduais.
A PBH Ativos, da prefeitura da capital mineira, por exemplo, além de receber apontamentos do Tribunal de Contas de Minas Gerais, foi investigada em uma CPI na Câmara dos Vereadores, que encerrou seus trabalhos sem conseguir aprovar relatório final, tantas as divergências entre os parlamentares (ver box abaixo). No estado do Rio, a Companhia Fluminense de Securitização (CFSEC), criada em outubro de 2015, suspendeu seu programa de securitização devido a uma ação civil pública ajuizada em novembro de 2017 pelo MPRJ, por intermédio do Grupo de Atuação Especializada no Combate à Sonegação Fiscal e aos Ilícitos contra a Ordem Financeira, Tributária e Orçamentária (Gaesf/MPRJ). E problemas de natureza similar têm ocorrido com quase todas as empresas à frente dessas operações.
Para a coordenadora nacional da Auditoria Cidadã da Dívida, Maria Lucia Fattorelli, o PLP 459/17 mascara a transferência de recursos públicos para bancos privilegiados. Os governos, em sua opinião, perdem o poder de gestão sobre seus orçamentos e o controle sobre a arrecadação, não podendo mais aplicar o dinheiro dos impostos de acordo com as prioridades e critérios definidos pela política pública e pela necessidade das comunidades. “O dinheiro deixa de seguir diretamente para os cofres públicos, o que é um desrespeito a toda a Constituição Federal, à Lei de Responsabilidade Fiscal, ao Código Tributário e a todas as leis orçamentárias que estão estruturadas no princípio orçamentário”, declara. Nesse sentido, a justificativa do projeto do senador José Serra (antigo PLS 204/2016) reconhece que seu objetivo é blindar juridicamente a engenharia financeira da securitização, alterando a Lei 4.320/64, que regulamenta os orçamentos públicos. “Com isso, as operações de cessão de direitos creditórios, que hoje já são efetuadas por alguns estados e municípios, ganharão maior segurança jurídica.” Em entrevista ao Portal do Senado, ele afirmou acreditar que as operações não constituem empréstimos, mas admitiu que “ainda há controvérsia a esse respeito”.
BARREIRA LEGAL São muitas as normas que fazem parte dessa controvérsia. A Lei 9.496/97(?), que trata dos orçamentos públicos, proibiu os entes públicos de emitir títulos da dívida no mercado; a Lei de Responsabilidade Fiscal, de assumir diretamente compromisso, confissão de dívida ou operação assemelhada mediante emissão de título de crédito; e uma Resolução do Senado (nº 43/01) criou restrições específicas para a cessão dos direitos sobre os créditos de estados e municípios. Por isso, para tentar superar a barreira legal, o Projeto de Lei classifica a cessão de direitos sobre os créditos como uma venda definitiva de patrimônio público, e não como uma operação de crédito, entendimento que tem prevalecido até agora. “Na prática, cria-se uma empresa estatal para gerir os ativos que serão vendidos, servindo de fachada para uma operação financeira que vai comprometer os estados, mas sem ser contabilizada como dívida”, explica Maria Lucia Fattorelli. “Pela Lei de Responsabilidade Fiscal, é crime. Qual ativo está sendo vendido?”, questiona. Para ela, o projeto pretende legalizar o desvio de recursos públicos e a contratação irregular de dívida pública – porque, embora a transferência do direito sobre os créditos seja contabilizada como venda de ativos, esses “ativos” são a própria arrecadação fiscal.
O Sinprofaz não acredita que o projeto vá acelerar a cobrança de créditos, como argumentam seus defensores. Ao contrário, afirma, em nota aprovada em assembleia da entidade, que “o PLP 459/2017 permite o desvio do fluxo da arrecadação tributária durante o seu percurso pela rede arrecadadora; viabiliza a realização de operação de crédito ilegal; compromete com vultosas garantias públicas as finanças atuais e futuras dos entes federados e, adicionalmente, provoca danos financeiros e perdas efetivas, conforme comprovado durante a realização de CPI na Câmara Municipal de Belo Horizonte.”
Também para a auditora-fiscal Rita Felicetti, colaboradora da Anfip, o modelo proposto pelo PLP 459 representa o endividamento de municípios e estados “ao permitir a criação de estatais não dependentes que vão emprestar ao ente público um dinheiro imediatista; enquanto o ente público dá como garantia a sua arrecadação futura”.
O diretor de Estudos Técnicos do Sinal discorda de que a operação envolva orçamento futuro, uma vez que as dívidas negociadas são aquelas já vencidas. “O fluxo realmente passa a não ser mais do governo. Passa para o investidor. Há captura do fluxo, mas apenas do que já deveria ter sido pago em exercícios anteriores.”
Ele reconhece, contudo, que governantes
poderiam relaxar na cobrança das dívidas de modo a provocar as operações de
securitização, com o objetivo de obterem recursos a curto prazo. Nesse
sentido, Daro defende a restrição da cessão dos créditos às dívidas de
governos anteriores. Outra medida protetiva seria impedir que as operações
sejam realizadas no período de 90 dias que antecedem o final dos mandatos
Executivos, exatamente para não comprometer a renda futura dos sucessores
eleitos.
A “securitização” prevista no PLP/459 se estrutura em um triângulo, do qual participam o ente público (prefeitura, governo do estado ou União), dono dos créditos a receber, a instituição financeira que for comprá-los na forma de títulos e uma empresa estatal “não dependente” (ou seja, não pode receber aportes do governo), que fará a mediação do negócio. Formalmente, o objetivo dessa estatal é gerir os ativos públicos, no caso, as debêntures relacionadas à cessão dos créditos, que, para serem emitidas, precisam de um agente financeiro – e nada impede que a mesma instituição que lance os títulos também os compre, como aconteceu na PHB Ativos, com o BTG Pactual. O projeto não exige licitação para a seleção desse banco ou fundo de investimento – fica a critério da prefeitura ou do estado.
O projeto inclui todas as dívidas vencidas dos governos, tributos ou de outra natureza, como privatizações, inclusive as que estão na Dívida Ativa e as que foram renegociadas. “No parcelamento dos créditos, o contribuinte assina uma confissão irretratável de dívida – não pode desistir; se parar de pagar, os bens são executados, razão por que o governo promove consecutivos programas de refinanciamento (os Refis)”, pondera a coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida. O que daria maior segurança e qualidade a esses créditos.
Normalmente, milhares de contribuintes pagam seus impostos ou dívidas na rede bancária, que, no dia seguinte, é obrigada a repassar o total recebido para o banco no qual o ente público tem conta. Na operação de securitização, o estado ou a prefeitura cria uma conta vinculada à empresa estatal aberta para este fim, que, por regra de contrato, pode ser acessada exclusivamente pelo investidor. De acordo com os termos negociados, é o banco privado que vai dar ordem para repassar uma parte ao poder público e reter o que lhe é devido.
“As informações dessa conta vinculada são sigilosas, e os recursos ficam fora do orçamento público, um privilégio inaceitável para os bancos. Toda a legislação de finanças está sendo aviltada”, acredita a coordenadora nacional da Auditoria Cidadã da Dívida.
Segundo estimativas feitas pelo senador
José Serra, em entrevistas no portal do Senado, a cessão de direitos de
crédito sobre a dívida ativa representaria uma receita de R$ 110 bilhões
para a União, e de R$ 25 bilhões, no caso das dívidas com os estados. Ele
não estimou, contudo, quanto vai representar em ganhos para as instituições
financeiras.
QUERIDA, ENCOLHI A CONSTITUIÇÃO
Edil Batista Junior
O art. 16 da Declaração dos Direitos dos Homens e do Cidadão (DDHC), de 1789, afirma que em "Toda sociedade que a garantia dos direitos não está assegurada nem a separação dos poderes determinada, não há em absoluto constituição". Referido artigo, cuja invocação é lugar comum nos tratados de Direito Constitucional, constitui um dos primeiros postulados para o fenômeno da positivação das leis, mas não define especificamente o que vem a ser a Constituição. Para tal compreensão, é preciso ter em mente que, sob o ponto de vista formal, a Constituição é uma norma. Mas não uma norma qualquer, senão a fundamental, que materializa a validade e a unidade de uma dada ordem jurídica hierarquicamente estruturada. Como ensinou o filósofo italiano Norberto Bobbio, a Constituição vem a ser a própria estrutura de uma comunidade política organizada. Ela é a ordem necessária que deriva da designação de um poder soberano e dos órgãos que o exercem.
Infere-se daí que a Constituição é o documento que consubstancia a tentativa de construção de um projeto racional de conformação social. Superada a crença de que a organização política do Estado dependeria de ingerências do poder divino, o homem moderno, bastante em si mesmo, decidiu por estabelecer as condições da coexistência social. Nesse contexto de laicização do conhecimento jurídico-político, substitui-se a ideia de Deus pela ideia de Nação, na justificação e legitimação da Constituição. E como pressuposto necessário ao novo modelo de organização social, limitou-se o poder da autoridade governante, por meio de duas ações fundamentais: a separação dos poderes e a declaração de direitos fundamentais do homem.
Foi o Estado Moderno, portanto, sobretudo após as revoluções burguesas do final do Século XVIII, que criou a noção de Constituição como corpo de leis consagradas em documento escrito, hierarquicamente superior às leis ordinárias, no bojo de uma luta que envolvia monarcas, autoridades religiosas e a aristocracia feudal. Não se deve olvidar, contudo, que, naquele momento histórico, culminando o espírito liberal burguês, o Estado se limitava à condição de espectador da vida social, com a missão primordial de resguardar a liberdade individual, em especial a econômica. Consequentemente, a ideia originária da Constituição, em sua concepção orgânica, limitou-se a detalhar a estrutura estatal e a preservar determinados direitos civis e políticos.
Além disso, a DDHC era mais promessa que realidade. E o que se verificou dos textos constitucionais europeus emergentes (com exceção da Constituição da Bélgica de 1832) foi a absoluta ausência de concretização dos direitos fundamentais prenunciados. Esse fato aponta que a falta de efetividade das normas sempre foi o maior problema dos documentos que consagram direitos. Como se percebe, ainda que consideradas como um sistema de normas e princípios, regulador e institucionalizador do fenômeno jurídico-político, as constituições escritas sempre careceram, para suas concretizações, da intervenção do Judiciário, tendo como parâmetro as declarações de Direito do homem.
Tal situação pode ser compreendida pelo raciocínio de que pragmaticamente considerado, o conteúdo da Constituição integra valores de duplo sinal: os decorrentes das estruturas políticas dominantes no momento de sua elaboração (ou seja, do próprio modelo de Estado vigente) e os correspondentes às outras estruturas (dentre as quais, a Sociedade Civil). Nessa coexistência de valores reside a dimensão ideológica da Constituição, que estabelece o marco fundamental do distanciamento entre texto e sociedade. A dissociação entre promessa normativa e realidade social proporciona que as normas constitucionais se tornem meras peças alegóricas a refletir a imposição de preceitos e estigmas, nomeadamente nos países economicamente periféricos, como o Brasil. Apartados da praxis social, os comandos perdem seu teor democrático e seu viés cogente, espírito que deve marcar o fenômeno constitucional.
Como é sabido que o Estado historicamente falha nos serviços e prestações sociais e econômicas que oferece à sociedade, o legislador constituinte busca garantir, no papel, direitos sob a forma de programas políticos, perdendo a Constituição sua juridicidade. O recurso às normas programáticas, que pretendem reconciliar Estado e Sociedade, deslocou o eixo de rotação das Constituições nascidas durante a segunda fase do liberalismo, as quais entraram em crise. Uma crise que culminou com as incertezas e paroxismos da Constituição de Weimar, onde se fez, por via programática, grande abertura para os direitos sociais. Positivando-se direitos em normas programáticas, desestimulam-se as lutas sociais. A construção teórica que permite o estabelecimento desse modelo de normas tem, dessa forma, caráter reacionário, pois ergue obstáculos à funcionalidade do Direito e ao poder de reivindicação das forças sociais. O que teria a sociedade a reivindicar já está contido na Constituição. E como ensina Celso Ribeiro Bastos, não se dando conta da inocuidade da contemplação desses direitos sem garantias, a sociedade acomoda-se, alentada e entorpecida pela perspectiva de que esses mesmos direitos um dia venham a ser realizados. A efetividade das normas programáticas depende essencialmente de fatores políticos. E é o próprio Estado que decide sobre a urgência dessa aplicação.
Nesse cenário, aponta-se a necessidade da concretização da promessa constitucional por meio de uma magistratura socialmente engajada, seja em virtude do caráter meramente proclamativo dos textos existentes, seja em face da inação do administrador ou do legislador ordinário. No caso brasileiro, a dimensão dessa inação é constatada quando, passados 30 anos da atual Constituição, há, ainda, cerca de cem dispositivos carecendo de regulamentação para seu pleno exercício, destacando-se, aí, a efetiva regulação do sistema financeiro nacional, tema sensível e urgente. Essa regulação materializa a ideia de uma Ordem Constitucional Econômica, que estabelece a estrutura do sistema econômico do Estado, bem como determina concretamente o regime econômico. O texto original da atual Constituição brasileira, no rastro de uma perspectiva socialdemocrata, pretendeu a construção de um sistema financeiro nacional inclusivo, prevendo até mesmo a limitação da taxa de juros aplicada pelos atores financeiros.
Afirmou a Constituição, dita cidadã, que “As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar”. Essa limitação, contudo, jamais foi efetivada, tendo sido retirada do texto em 2003. O Supremo Tribunal Federal, a quem incumbe o papel de interpretar, em última instância, as normas constitucionais, jamais admitiu a aplicação direta dessa limitação aos casos concretos, sob a alegação de que ela careceria de regulamentação (como se tal regulamentação, por norma infraconstitucional, tivesse o condão de estabelecer patamar de juros superior àquele expressamente determinado pelo constituinte de 1988).
Esse exemplo demonstra que, por trás da aparência progressista da Constituição, esconde-se, muitas vezes, uma insinceridade normativa. Caberia ao STF estar atento a essa realidade. Ao perceber que muitos dos dogmas constitucionais consagrados são mais instrumentos persuasivos que realidade social, a Corte deveria reagir, quando provocada, para concretizar os direitos sociais, econômicos e, sobretudo, individuais, jamais para negá-los. Normas constitucionais não regulamentadas, como as que pretenderam a formação de um sistema financeiro menos selvagem, se tornam falácias ideológicas. A superestrutura econômica frequentemente cria e reproduz desigualdades no subsistema social, nos aspectos classe, gênero e etnia, demonstrando que a igualdade formal assegurada pela Constituição não corresponde à igualdade material. Essa ficção de isonomia proporciona que, na apreciação de determinado fato jurídico, sejam utilizados pesos e medidas diferentes na aplicação da lei. Ora, se a igualdade jurídica que a Constituição pretende assegurar não encontra paralelo no dia a dia, então a ordem jurídica não estabelece a igualdade que alardeia.
Para se ter ideia de como o STF perdeu uma excelente oportunidade de fazer valer o texto constitucional, efetivando um direito que, sem dúvida, iria ao encontro dos anseios sociais, nomeadamente das classes menos favorecidas, sufocadas por juros escorchantes praticados pela banca nacional, aquele Tribunal, em 2007, concluiu o julgamento de três mandados de injunção impetrados por sindicatos de servidores públicos, onde se buscou assegurar o pleno exercício do direito de greve estabelecido no art. 37, VII, da CF/88, até hoje também não regulamentado. O STF foi favorável aos pedidos e estabeleceu a solução para a omissão legislativa com a aplicação analógica da Lei 7.783/89, que regulamenta o exercício do direito de greve na iniciativa privada. Ou seja, exercendo seu papel de guardião da Constituição, aquela Corte asseverou que as normas constitucionais, mesmo as não regulamentadas, têm poder normativo, que deve ser respeitado. Por que razão o STF não agiu com a mesma autoridade para enfrentar o capital, efetivando a limitação dos juros bancários?
Constatações como essa despertam na sociedade um acentuado questionamento axiológico acerca do valor da Constituição, de suas funções, e do próprio papel do STF, fruto de movimentos sociais que passam a desafiar a rigidez lógico-formal do sistema jurídico, em um cenário desfavorável ao modelo de pensamento do Direito puramente dogmático. Organizações populares, sindicais, comunitárias etc., mediante a politização de questões aparentemente técnicas, criam fatos novos reivindicando direitos que abrem portas a práticas judiciais inovadoras e verdadeiramente progressistas.
Em resumo, pode-se concluir que uma acurada análise da história do direito Constitucional permite perceber os avanços alcançados pela sociedade no campo jurídico com esse instrumento. Por outro lado, também revela a existência de normas que tão-somente materializam declarações bem intencionadas, com o nítido propósito de recusar eficácia e aplicabilidade às proposições cujas existências servem, quando muito, para emprestar um viés axiológico. Essa situação nos coloca a um passo do ativismo judicial, para o bem ou para o mal, sintetizando o sentimento de frustração constitucional na sociedade, em razão do permanente distanciamento entre o mundo normativo e o mundo real que, no caso brasileiro, permanentemente, faz encolher a sua já combalida Constituição.
(*) Professor da Uninassau/Recife. Doutor em Teoria Geral do Direito pela UFPE e conselheiro editorial da Por Sinal.
TRIBUTAÇÃO SOLIDÁRIA
Resultado do trabalho de mais de 40 especialistas, o movimento “Reforma Tributária Solidária, - Menos Desigualdade, Mais Brasil” prepara uma proposta de transformação do sistema tributário brasileiro, que combata a enorme desigualdade social do país. Para isso, defende o aumento da arrecadação sobre a renda e a redução da carga que incide sobre o consumo, além da volta da tributação sobre lucros e dividendos distribuídos a acionistas de empresas. Também quer a criação de um fundo para financiar a proteção social, principal instrumento de redução das desigualdades. O projeto final, que deve ser levado aos parlamentares a debate no Congresso, está previsto para divulgação em agosto.
A iniciativa é da Associação Nacional dos
Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip) e da Federação
Nacional do Fisco Estadual e Distrital (Fenafisco), com apoio do Conselho
Federal de Economia (Cofecon), Departamento Intersindical de Estatística e
Estudos Socioeconômicos (Dieese), Fundação Friedrich Ebert Stiftung Brasil (FES),
Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), Instituto de Justiça Fiscal (IJF)
e Oxfam Brasil. Segundo a Anfip, apenas a isenção dos lucros e dividendos,
estabelecida pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em 1996,
representa cerca de R$ 80 bilhões a menos no orçamento da União, por ano. Os primeiros diagnósticos do estudo, que compara o sistema tributário brasileiro com os de outros países, estão consolidados no livro “A reforma tributária necessária: diagnóstico e premissas”, que será lançado na abertura do Fórum Internacional Tributário, em São Paulo. Com 804 páginas, 39 artigos, escritos por 42 especialistas, dedicados ao projeto desde julho de 2017, o livro terá também uma versão on line no site http://plataformapoliticasocial.com.br/.
“Nossa intenção é apresentar o trabalho aos presidenciáveis”, afirma o economista Eduardo Fagnani, professor da Unicamp e coordenador do trabalho técnico e da edição do livro.
Modelo solidário O documento aponta o caráter regressivo do sistema como uma das principais razões da distribuição injusta da renda no Brasil, que dá ao país o posto de décimo mais desigual do mundo, no ranking de mais de 140 países da Pnud, utilizado pela ONG Oxfam.
Por isso, o projeto quer ir além de unicamente “simplificar” o sistema, como pretende a minuta do estudo atualmente em discussão no Congresso, do deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR). De acordo com Fagnani, o projeto de Hauly, ao extinguir vários impostos e substituí-los por um IVA único, atinge em cheio aqueles que têm destinação determinada para a Seguridade Social – como o PIS e a Cofins – cujos recursos ficariam à mercê da Lei Orçamentária e das inclinações políticas do Congresso. Esse caminho, alerta o economista, poderia representar o fim do Estado social brasileiro, fundado pela Constituição de 1988.
O modelo solidário, diferentemente, pretende equilibrar simplificação e bem-estar social, com base em oito premissas básicas. A primeira delas é que seja elaborado na perspectiva do desenvolvimento. “Porque as desigualdades do país não são só por renda. Envolvem cor, gênero, acesso à Justiça, à segurança, saúde, alimentação, educação, classes e regiões do país”, explica Fagnani. O economista deixa clara a importância da tributação em um projeto de desenvolvimento. “Ela é fundamental porque reduz a desigualdade de renda, melhora o mercado interno, incentiva o crescimento e cria condições para que o Estado amplie o financiamento dos investimentos, tanto econômicos como sociais, que melhoram a qualidade de vida das pessoas”.
A segunda é que a reforma esteja “adequada ao propósito de fortalecer o Estado de bem-estar social, em função do seu potencial como instrumento de redução das desigualdades sociais e como promotor do desenvolvimento nacional”. Ou seja, é preciso enfrentar a tributação direta. “O Imposto de Renda pessoa jurídica e pessoa física são os pilares, mas não podemos parar aí. É preciso taxar transações financeiras, enfrentar os paraísos fiscais e a propriedade e a riqueza (impostos sobre herança, imóveis, veículos, grandes fortunas), lucro e dividendos.”
A progressividade deve aumentar por meio da redução da tributação indireta, sobre o consumo, aí sim, com uma simplificação da estrutura. Outras premissas incluem restabelecer as bases do equilíbrio federativo, aperfeiçoar o tratamento dado ao comércio internacional e levar em conta a tributação ambiental.
Segundo Fagnani, a tributação ambiental existe mundialmente desde a década de 1970. Já no Brasil, embora o país seja o maior consumidor de agrotóxico do mundo, o produto é isento. “Na Europa, a tributação ambiental representa 6% da carga tributária total, e a meta é chegar a 10% em 2020”, diz.
Finalmente, a reforma do sistema tributário nacional deve fomentar ações que resultem no aumento das receitas, por meio da revisão das renúncias fiscais e pelo combate à evasão fiscal. Isso significa, entre outras medidas, rever incentivos, que somam hoje mais de R$ 300 bilhões, ou 20% da carga de Imposto de Renda, da ordem de R$ 1,5 trilhão. Ao mesmo tempo, a proposta pretende modernizar a administração tributária, tornando-a mais ágil e com maior poder de combate à sonegação – “que nem é crime no Brasil”, observa o economista.
Segundo o Relatório “A distância que nos une”, publicado em setembro de 2017 pela Oxfam, entidade que apoia o Movimento Reforma Tributária Solidária, os seis maiores bilionários do país possuíam juntos, no início de 2017, riqueza equivalente à da metade mais pobre da população. O Brasil contava, então, mais de 16 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza, sendo o país que mais concentra renda no 1% mais rico, com o terceiro pior índice de Gini na América Latina e Caribe (atrás somente da Colômbia e de Honduras).
Em relação à renda, o 1% mais rico da população recebe, em média, 25% de toda a renda nacional, e os 5% mais ricos, o mesmo que os demais 95%. Uma pessoa que recebe um salário mínimo mensal levaria quatro anos trabalhando para ganhar o mesmo que o 1% mais rico ganha em um mês, em média. Seriam necessários 19 anos de trabalho para equiparar um mês de renda média do 0,1% mais rico.
Apesar da resistência disseminada à ideia de aumentar impostos, efeito de um bombardeio de propaganda que inclui os “patos” da Fiesp, o coordenador de campanhas da Oxfam Brasil e um dos autores do relatório, Rafael Georges, está otimista com a possibilidade da reforma ser aceita. Em pesquisa feita pela entidade para a Folha de S.Paulo, em dezembro do ano passado, ele conta que, embora a maioria tenha sido contra aumentar tributos para financiar políticas sociais, 71% dos consultados concordaram com a afirmação de que é preciso aumentar impostos dos muitos ricos para financiar saúde e moradia. “Via de regra, o brasileiro espera que o Estado atue para corrigir desigualdades, mas não quer pagar impostos. Esse aparente paradoxo pode resultar na tributação dos muito ricos”, diz. Para Georges, é importante discutir o papel social do imposto.
A desigualdade, que já é grave, tende a aumentar com a crise. Estudo feito a partir de dados da Pnad Contínua do IBGE pelo economista Daniel Duque, do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre-FGV), a pedido do jornal Valor, mostra que, no primeiro trimestre desse ano (ou de 2018), a renda média mensal dos 20% mais pobres caiu 5%, e a dos 20% mais ricos subiu 10,8%, na comparação anual.
ENTREVISTA
A trajetória política e intelectual de Bresser-Pereira está intimamente ligada à História do Brasil. Sua atuação se destacou não só na administração pública, como também na iniciativa privada e na área acadêmica. Foi presidente do Banespa e secretário de governo na gestão Franco Montoro; ministro da Fazenda de José Sarney; e ocupou os ministérios da Administração Federal e Reforma do Estado e da Ciência e Tecnologia, no governo Fernando Henrique Cardoso. Na iniciativa privada, esteve à frente do Grupo Pão de Açúcar como diretor-administrativo, entre 1965 e 1983. Professor emérito da Fundação Getulio Vargas desde 2005, é editor da Revista de Economia Política, que fundou e dirige desde 1981.
Aos 84 anos, Bresser-Pereira continua ocupando um lugar de destaque no debate nacional, discutindo com paixão novas estratégias para a retomada do desenvolvimento do Brasil. Ano passado, diante de um país dividido e de uma crise econômica sem precedentes, reuniu um grupo de intelectuais para repudiar a “volta ao liberalismo radical do governo Temer”, que, segundo ele, “não quer saber do social, apenas destruir e reduzir salário, bem ao gosto dos liberais”. Dessas conversas, surgiu o Manifesto Projeto Brasil Nação, lançado em março de 2017. “A missão do Projeto Brasil Nação é pensar o Brasil, é ajudar a refundar a nação brasileira, é unir os brasileiros em torno das ideias de nação e desenvolvimento”, diz o Manifesto, que recebeu apoio de importantes personalidades do mundo cultural, acadêmico e político.
Perguntado sobre o andamento do Brasil Nação, um ano depois de lançado, o economista nos passou a ideia de que a iniciativa não rendeu os frutos que esperava, confessando-se um pouco incompreendido nas suas propostas. Talvez por isso, em vez de responder às perguntas da Por Sinal (minhas, do Daro Piffer e do Paulo Lino), preferiu aproveitar o encontro e, durante uma hora, nos deu uma aula sobre o drama da economia brasileira, semi-estagnada desde a década de 80.
FLAVIA CAVALCANTI
A semiestagnação da economia brasileira
A
doença holandesa é uma sobreapreciação de longo prazo da taxa de câmbio de
um país que é exportador de commodities. E essas commodities, por uma série
de razões – “rendas ricardianas” [expressão derivada do nome do
economista britânico David Ricardo (1772-1823), para as rendas que têm
origem nos diferenciais de produtividade de recursos naturais. Por exemplo,
a renda da terra ou de reservas de petróleo] ou um boom de commodities,
ou os dois juntos –, também podem ser apreciadas com lucro. É uma taxa
substancialmente mais apreciada do que a taxa necessária para que as
empresas industriais, que utilizam tecnologia no estado da arte mundial,
sejam competitivas. É uma falha de mercado, uma desvantagem, que provoca um
desequilíbrio fundamental. Os países que têm doença holandesa não se
industrializam – Arábia Saudita, Venezuela, por exemplo.
Quem
paga pelo ajuste
O Marcos Lisboa escreveu um artigo na Folha de S.Paulo, publicado em maio, dizendo que não compreendia por que alguns economistas, eu entre eles, estão sempre atribuindo o problema fundamental do Brasil aos juros e ao câmbio. Em determinado ponto, ele escreve: “Quando você deprecia o câmbio, você reduz o salário e aumenta o lucro dos capitalistas.”
Carta de 88 DEBATE SOBRE A AUTONOMIA DO BANCO CENTRAL ENTRA COM FORÇA NA PAUTA DO CONGRESSO E ESTÁ ENTRE AS 15 MEDIDAS PRIORITÁRIAS DA AGENDA ECONÔMICA DO GOVERNO. CARMEN NERY O debate sobre a autonomia do Banco
Central surgiu com força em 1988, na Constituinte, tendo no centro das
discussões a polarização entre os monetaristas, de um lado, e os
desenvolvimentistas, de outro. Trinta anos depois, com o país vivendo
uma situação econômica e política impensável há tempos atrás, o tema
entrou novamente na pauta do Congresso Nacional pelas mãos do presidente
da Câmara de Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que, depois de
negociações com a direção da Autarquia, produziu texto que estabelece as
regras para o exercício da autonomia do BC. E que ganhou prioridade logo
após o governo ter desistido de tentar aprovar a Reforma da Previdência. O debate sobre a autonomia do Banco
Central tem como pano de fundo a regulamentação do artigo 192 da
Constituição de 88, que trata do Sistema Financeiro Nacional, aguardada
há 40 anos e até hoje não enfrentada. Para o Sinal, a necessária
regulamentação desse artigo é indispensável para trazer maior segurança
às instituições envolvidas — Banco Central do Brasil (BC), Comissão de
Valores Mobiliários (CVM) e Superintendência de Seguros Privados (Susep),
ao mercado e ao cidadão. Assessor de Ulisses Guimarães na
Constituinte, o economista e professor da Unicamp Luiz Gonzaga Belluzzo
lembra que houve um lobby poderoso para que o artigo 192 não fosse
regulamenta- do, mas entende que a revisão do sistema financeiro deve
ser o caminho para um Banco Central verdadeiramente independente. Para o
economista, a melhor proposta de um banco central autônomo seria aquela
que prevê não apenas duas, mas uma tripla missão: controle da inflação,
estímulo ao desenvolvimento e estabilidade do sistema financeiro. “Há uma indisposição dos economistas conservadores e dos tecnocratas em relação ao segundo mandato, que assegura que o Banco Central tem de se dividir entre a estabilidade dos preços e o crescimento econômico. O Banco deveria ter ainda um terceiro mandato: a estabilidade financeira. Isso é o que está sendo adotado no mundo inteiro. Não está explícito no mandato dos bancos centrais, mas está implícito na ação das autoridades monetárias”, observa o professor da Unicamp. O texto a ser apresentado pelo
deputado Rodrigo Maia para votação na Câmara, prevê, segundo suas
próprias informações, no entanto, o controle da inflação como única
missão do Banco Central. O presidente e oito diretores terão manda- to
de quatro anos, não coincidente com o Presidente da República, e só poderão ser exonerados por decisão do Presidente, com aprovação do Senado nos casos de insuficiência de desempenho ou infração funcional. A autoridade monetária não estaria ligada a nenhum ministério. Aliás, nos últimos anos, a ideia de um banco central autônomo que tome decisões essencialmente técnicas, não influenciadas por questões políticas de governo, ganhou força entre empresários e executivos do mercado financeiro. Mas para Belluzzo, conhecido por suas ácidas críticas ao neoliberalismo, a ideia que o governo e o mercado propõem de um banco central autônomo, que se move- ria por critérios estritamente técnicos, é uma grande mentira. “Hoje o CMN é composto pelo presidente do Banco Central, que vem do sistema financeiro, assim como o ministro da Fazenda, que também integra o Conselho”. E completa: “Temos que ter uma autoridade monetária que seja realmente pública e que não possa ser capturada pelo setor privado, exatamente o contrário do que ocorre no Brasil. A independência só é assegurada se houver um conjunto de regras de vigilância muito bem estabelecidas. Quem vai vigiar? O Conselho Monetário Nacional? O Congresso?”, questiona.
AS BANDEIRAS DO SINAL Na visão do Sinal, a dupla missão do
Banco Central teria como responsabilidade assegurar a estabilidade da
moeda, uma conquista da sociedade, mas também o comprometimento com o
desenvolvimento econômico e a geração de emprego. O modelo já é adotado
pelo Federal Reserve, banco central americano, com relativo sucesso, ao
manter ao mesmo tempo preços estáveis e crescimento do emprego. Além de poder usufruir de autonomia orçamentária, administrativa e operacional, o Sinal defende que o Banco Central deveria contar com um corpo técnico com autonomia para fiscalizar o Sistema Financeiro Nacional. A ideia é que os funcionários do BC tenham prerrogativas para exercitar plenamente a sua atividade fiscalizatória, com a independência necessária, o que hoje acontece limitadamente. “Se o agente público não tem autoridade administrativa para exercitar o poder de fiscalizar e constituir em mora o fiscalizado em situação irregular, ele perde a condição mais importante para exercer sua função, que é a independência”, lembra um técnico do Banco. A ampliação do Conselho Monetário
Nacional (CMN) seria o ponto de partida para essas mudanças, com a
integração dos representantes dos setores produtivos e dos
trabalhadores, o que daria uma representatividade maior para o Conselho.
Por trás dessa proposta está a visão de que para garantir a solidez do
sistema financeiro e a estabilidade da moeda — valores essenciais do BC
já incorporados pela sociedade — é preciso um banco central autônomo,
com controle social, que não seja submetido nem ao mercado, nem ao
governo. Sendo assim, o sistema carece de legislação atualizada que estimule a poupança interna e a ampliação do nível de investimento em todos os setores da economia. Hoje, os recursos que poderiam ser utilizados no fomento da produção são prioritariamente direcionados para
títulos da dívida pública. UM PASSO À FRENTE Mesmo deixando de lado algumas
bandeiras do Sinal, a proposta que está sendo negociada na Câmara, traz
alguns avanços que não podem ser ignorados. Para o presidente do
sindicato, Jordan Pereira, a aprovação da autonomia do Banco Central,
ainda que com limitações, representa uma grande conquista para os
servidores da instituição. Ele explica que a ideia de mandatos
coincidentes com o presidente da República teria por objetivo a garantia
da condução da política econômica do governo pelo BC. Mas, da forma como
foi colocado no projeto de Maia, com mandatos de quatro anos não
coincidentes e trocas de diretores, a proposta permite mudanças mais
suaves na economia.
JUROS ALTOS
Jefferson Guedes
Cresce a pressão em cima dos bancos em
favor de uma queda efetiva do custo dos empréstimos. O primeiro bombardeio
veio da Fiesp, que lançou no dia 13 de março a campanha #ChegaDeEngolirSapo
- Diga Não aos Juros Mais Altos do Mundo. Quinze dias depois, o Banco
Central anunciou a redução do depósito compulsório – um dos cinco itens na
composição do spread . Em abril, um estudo divulgado por Tony Volpon,
economista-chefe do Banco UBS, mostrou que o spread médio dos
empréstimos à pessoa física em fevereiro estava 20 pontos percentuais acima
da taxa que deveria ser cobrada, levando-se em conta o declínio da Selic e
do nível de inadimplência. No front legislativo, o Senado debateu este
estudo em audiência com a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) e ainda
criou a CPI dos Cartões de Crédito para investigar a cobrança de juros
abusivos no rotativo. Como se vê, é um movimento que tem muitas
ramificações. A grande dúvida é se há força política para vencer a
resistência dos bancos. O Itaú, pelo menos, vem fazendo ouvidos de mercador.
Após divulgar o lucro de R$ 6,2 bilhões referente ao primeiro trimestre do
ano, o presidente do banco, Candido Bracher, afirmou (via teleconferência)
que não faz sentido esperar que os juros bancários tenham uma queda sensível
por conta da sequência de cortes na Selic. “É o mesmo que cobrar das
montadoras carros mais baratos devido à queda no preço do aço”, acrescentou.
Para Bracher, a redução do spread bancário será paulatina e deve ser
buscada "de modo sustentável". Por sustentável entenda-se: os bancos só vão
reduzir o spread se tiverem garantias de que isso não irá impactar os
resultados extraordinários que vêm obtendo. Segundo o Itaú, várias
alternativas estão em estudo, com destaque para linhas de crédito menos
arriscadas. Lucros intocáveis Enquanto o consumidor espera o resultado
prático desses estudos, os bancos utilizam outras estratégias para manter a
lucratividade intacta. Conforme lembra Ione Amorim, economista do Instituto
Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), os bancos têm se valido de
demissões de funcionários, fechamento de agências e aumento da digitalização
de operações para ampliarem o faturamento. Com um detalhe que faz toda a
diferença: a economia obtida não é repassada ao consumidor final, que
continua pagando tarifas altíssimas pelos serviços bancários. Em 2017, os cinco maiores bancos do Brasil
- BB, Caixa, Itaú, Bradesco e Santander - arrecadaram R$ 27,3 bilhões
somente com as tarifas de conta corrente. O levantamento desses números,
realizado pelo site Infomoney, trouxe outros dados que ajudam a entender a
realidade do sistema financeiro nacional. O Banco do Brasil, um dos quatro
maiores do Brasil, teve lucro líquido de R$ 11,1 bilhões no ano passado. O
ganho com tarifas, por sua vez, somou impressionantes R$ 6,9 bilhões. O
cenário se repete, de forma muito similar, nas demais instituições
financeiras. Segundo o Idec, dos 58 pacotes de tarifas oferecidos pelos
bancos, apenas dois tiveram reajustes inferiores ao índice oficial de
inflação. A Caixa, em particular, chamou a atenção por aumentos
significativos em seus pacotes de serviços para pessoas físicas e jurídicas,
como no reajuste de 78,8% em seu pacote convencional, que passou de R$ 25,10
para R$ 44,90. Já que as tarifas têm um peso tão decisivo
na lucratividade dos bancos, é pouco provável que sejam reduzidas. Por um
motivo muito simples: em um cenário de baixa competição, há pouco incentivo
para se oferecerem preços melhores para o consumidor. Na avaliação de Ione
Amorim, a política tarifária dos grandes brancos é típica de "um cartel
autônomo", pois os aumentos não seguem parâmetros, como a inflação e o custo
operacional. A alegação dos bancos - que afirmam promover os reajustes para
realinhar seus preços em relação ao mercado - é, segundo Ione, a comprovação
da existência deste cartel. Mesmo que os preços não sejam "combinados", fica
evidente que cada banco aumenta as tarifas para nivelar, por cima, com a
concorrência. Estudo sobre o
spread Muitos especialistas concordam, na
essência, com a posição da economista do Idec. Tony Volpon, ex-diretor do
BC, entende que o nível de concentração bancária não é a única causa do
spread elevado, mas certamente contribui para manter o cenário atual. Em
seu estudo, que fez estardalhaço no mercado, o economista-chefe do UBS
Brasil, valendo-se de um modelo bastante simples, comparou os preços do
spread com o comportamento das duas variáveis fundamentais para o custo
do crédito à pessoa física — o nível de inadimplência nos empréstimos e as
oscilações da Selic. Chegou à conclusão de que o spread não responde
mais ao comportamento dessas variáveis. É preciso ler os números atentamente para
se avaliar a tese de Volpon. Em outubro de 2016, por exemplo, a taxa média
de juros para pessoas físicas estava em 74,3% ao ano. Em fevereiro de 2018,
caiu para 57,7%. Numa análise superficial, com o número bruto, um desavisado
poderia saudar a redução de 16,6%. Ocorre que, em um ano e meio, a Selic
caiu 54%. Houve espaço, portanto, para uma redução mais significativa do
spread que não se efetivou. Se tivesse respondido à queda dos juros
básicos e ao recuo da inadimplência, como prevê o modelo econométrico, a
taxa média dos empréstimos ao consumidor deveria ser, segundo Volpon, de
37,6% ao ano. Vinte pontos percentuais abaixo dos 57,7% efetivamente
cobrados em fevereiro de 2018. E faz uma diferença e tanto. Chamou a
atenção, inclusive dos senadores, que debateram o estudo de Volpon em
audiência pública promovida pela Comissão de Assuntos Econômicos da Casa, em
24 de abril. Um dos convidados era Murilo Portugal, presidente da Febraban.
Com uma ponta de ironia, Portugal disse aos senadores que fica esperançoso
quando vê economistas do gabarito de Volpon trabalhando em um grande banco
internacional (UBS) que não atua no mercado de crédito. “Quem sabe esses
modelos da área econômica vão ser validados pela área de crédito e esse
banco vai começar a emprestar no crédito para aproveitar essa oportunidade
que acham que existe aqui no Brasil”, afirmou. Em seguida, questionou a
própria natureza do estudo: “Se é uma coisa tão boa, se está 20 pontos acima
do que deveria estar a taxa, por que será que os bancos estrangeiros não
entram nessa área?” Para o presidente da Febraban, só
conseguiremos reduzir o spread bancário se fizermos uma reforma no
ambiente de crédito no Brasil que diminua os elevados custos da
inadimplência, dos impostos e dos custos regulatórios. “Não é a concentração
bancária, não é a falta de competição, não são os lucros abusivos que
explicam o alto spread bancário, mas, sim, os elevados custos da
intermediação financeira no Brasil”, disse aos senadores. Parece pouco provável que Portugal consiga excluir a concentração bancária deste debate. Num ponto, porém, os especialistas concordam com ele: é preciso analisar cada item que impacta o ambiente de crédito e, a partir daí, atuar em várias frentes para tentar reduzir o spread. Miguel José Ribeiro de Oliveira, diretor de Economia da Associação Brasileira de Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade (Anefac), entende que nada justifica o patamar dos juros que existe hoje, mas lembra que, além da Selic, há outros itens que impactam o custo dos empréstimos, conforme se vê no gráfico 1.
O mito da inadimplência A inadimplência é um capítulo à
parte. Há uma disputa enorme em torno do papel dos caloteiros na composição
do spread. Isso se agrava porque os números disponíveis servem para
diferentes recortes. A Fiesp, por exemplo, argumenta que a taxa de calotes
no Brasil não é esse bicho de sete cabeças que os bancos pintam. No ranking
global de inadimplência de 2016, o Brasil ocupava a 66ª posição, com uma
taxa de calotes inferior àquela registrada em países como Itália, Irlanda,
Rússia e Espanha. Ainda assim, a margem de lucro cobrada pelo sistema
financeiro nacional é bem maior. É importante levar em conta que essas
economias têm sistemas bancários bem distintos. Algumas variáveis são
difíceis de serem comparadas com precisão. Por isso, quando se faz uma
crítica mais sólida do spread praticado no Brasil, é melhor cotejá-lo
com a média de inadimplência das operações de crédito.
Os números neste sentido são bem
reveladores. Em março de 2018, a inadimplência no segmento de recursos
livres – em que as taxas de juros são livremente definidas pelos bancos –
caiu para 4,8%. O declínio, aliás, vem sendo uma tônica: em 2017, este
indicador estava em 5,7%, contra uma média de inadimplência de 6,3% no
período 2012-2014. Já o comportamento do spread seguiu
o caminho inverso. No período entre 2012 e 2014 – antes da crise, portanto
-, o spread médio para pessoa física nas operações com recursos
livres teve uma média de 34,5 pontos. Com a crise e a recessão, o spread
subiu ano a ano e atingiu 54,6 pontos percentuais em 2017 - mesmo com a
inadimplência mantendo-se em torno de 6%. Para a Fiesp – que vem fazendo
coro ao estudo de Tony Volpon –, as pessoas físicas poderiam ter pago R$
141,6 bilhões de juros a menos se o spread estivesse alinhado com a
Selic e com os níveis de inadimplência, o que significa algo entre 20 e 23
pontos percentuais abaixo das taxas efetivamente cobradas pelos bancos. A Febraban discorda. "O problema não é
apenas a inadimplência, é a taxa de recuperação dos créditos inadimplidos",
disse Murilo Portugal na audiência pública realizada no Senado. O presidente
da Febraban apresentou dados de um estudo da consultoria Accenture, que
mostra que a taxa de recuperação dos bancos em caso de calote é de apenas
15,8%. Segundo este trabalho, as despesas com
provisões para empréstimos não pagos representam 4,5% da carteira de crédito
dos bancos, uma proporção 2,5 vezes maior do que dos países emergentes,
cujas provisões representam, em média, 1,8% da carteira de crédito. É
baseado nesses números que a Febraban afirma que o custo da inadimplência no
Brasil é maior em comparação com os países desenvolvidos. Cabe observar, contudo, que é de frequente
utilização no mercado os chamados acordos de composição de dívida, em que
parte significativa dos elevados juros é abatida para viabilizar o pagamento
pelos devedores, em operações como cheque especial e cartão de crédito. Em
geral, é necessário que a operação esteja inadimplida. Desta forma, o
spread elevado contribui para o aumento da inadimplência não só pela
dificuldade de pagamento, mas como estratégia para uma melhor negociação.
Mas ainda que se admita, para fins de
argumentação, maior dificuldade na recuperação dos bancos nos casos mais
extremos de calote, o fato é que a inadimplência não cresceu de forma
espetacular nos últimos anos, algo que seria totalmente compreensível em
função da brutal crise econômica. Não existe motivo para o Brasil ocupar o
posto de campeão mundial do spread. Estamos diante, portanto, de uma guerra
entre os bancos e a sociedade. O Banco Central, como autoridade reguladora
do Sistema Financeiro Nacional, tem o dever de se posicionar a respeito.
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