Reforma da Previdência
FUTURO DO TRABALHADOR ESTÁ EM JOGO
CRÍTICAS A PRIVILÉGIOS SERVEM DE BIOMBO PARA ESCONDER
DA POPULAÇÃO PERDAS QUE ATINGIRIAM A TODOS.
VERÔNICA COUTO
Tentar
aprovar a Reforma da Previdência durante a transição de governo, e após a
eleição para renovação do parlamento, é totalmente antidemocrático”, alertou
o presidente do Sindicato Nacional dos Funcionários do Banco Central
(Sinal), Jordan Alisson Pereira. A preocupação se justifica, uma vez que o
presidente da República eleito, Jair Bolsonaro, declarou ter intenção de
retomar a PEC 287, que a gestão de Michel Temer havia desistido de votar por
falta de apoio suficiente. “O novo governo precisa dar uma sinalização de
que, no caso de querer apresentar nova proposta para uma mudança dessa
envergadura, vai conduzir as interlocuções corretas e debater com as
entidades”, avalia Jordan.
O relançamento da Frente Parlamentar em Defesa da Previdência, no início de
novembro, faz parte dos esforços para assegurar a ampla discussão do tema e
garantir direitos e interesses do conjunto da sociedade. Segundo Rudinei
Marques, presidente do Sindicato Nacional dos Auditores e Técnicos Federais
de Finanças e Controle (Unacon Sindical) e do Fórum Nacional Permanente de
Carreiras Típicas de Estado (Fonacate), as informações que surgem sobre
mudanças na Previdência têm sido contraditórias. Por isso mesmo é importante
entender qual é de fato a proposta do governo e o calendário programado para
ela.
“O momento é muito preocupante, com o futuro ministro da Economia, Paulo
Guedes, querendo adotar o modelo chileno”, afirmou Rudinei. Ele lembra que,
no Chile, onde a Previdência Social foi privatizada há 30 anos, a maioria
dos aposentados recebe, atualmente, menos de um salário mínimo, e precisa de
complementação financeira do governo. “Os aposentados não estão tendo
recursos para comer.”
UM VILÃO PARA A NOVELA
O presidente do Fonacate observa que a Reforma Trabalhista, ao retirar
muitos trabalhadores do mercado formal, prejudicou a arrecadação da
Previdência. “Estes impactos não foram medidos e começam a prejudicar as
contas. Não se pode admitir mais uma reforma feita às pressas, só para dar
resposta ao mercado, sem se preocupar com o cidadão, que vai precisar da
aposentadoria.”.
O biombo para esconder da população essas perdas seria a propaganda contra o
que a mídia tem insistido em chamar de “privilégios” do funcionalismo. “É um
discurso distorcido da realidade, que procura jogar a população contra o
servidor público”, alerta o presidente do Sinal. Ele chama a atenção para o
fato de que a previdência do servidor público civil já passou por ajuste
anterior, em 2013, que fixou idade mínima de 60 anos e inseriu o sistema de
capitalização para quem quiser receber benefício acima do teto — o mesmo
praticado no Regime Geral.
A estratégia, segundo ele, aproveita a insatisfação da população com a
qualidade dos serviços públicos prestados, muitas vezes devido às restrições
orçamentárias federais. “Levantar a bandeira contra o serviço público passa
a imagem irreal de que algo vai melhorar, ao mesmo tempo em que se esconde
os prejuízos que serão impostos à previdência de toda a população. Falar
apenas do servidor público também tira o foco da aposentadoria do militar,
dos policiais, que têm um regime próprio, sem idade mínima.”
A proposta do governo Temer, pronta para ir a plenário, na avaliação de
Jordan está muito desgastada e sem condições de corrigir eventuais problemas
no sistema previdenciário. “O debate com as entidades não é corporativista.
Buscamos fazer uma discussão dos problemas do país e trazer soluções”,
defende.
Para o senador Paulo Paim (PT-RS), que presidiu a CPI da Previdência
encerrada em outubro de 2017, o atual modelo solidário de seguridade social
brasileiro é estruturalmente superavitário e não precisaria de alterações
normativas. O relatório da CPI apontou, apenas, necessidade de
aperfeiçoamento nos seus mecanismos de controle e fiscalização, para
melhorar a gestão e o uso dos recursos. O senador reeleito pretende debater
com o novo governo formas de corrigir esses mecanismos, em vez de alterar o
sistema do Regime Geral, estabelecido na Constituição.
As principais e mais polêmicas propostas da PEC 287envolvem a idade mínima
para se aposentar e a metodologia de cálculo do benefício, tornando mais
difícil alcançá-lo na integralidade. “Provavelmente essas alterações
obrigarão as pessoas a trabalharem muito além dos 65 anos de idade”, avalia
Floriano de Sá Neto, presidente da Associação Nacional dos Auditores Fiscais
da Receita Federal do Brasil (Anfip). Além disso, a proposta de Temer prevê
a abertura ao mercado da previdência complementar dos servidores públicos,
hoje oferecida em regime fechado pelo Estado (ver matéria na página 19). Uma
mudança que, ele acredita, trará prejuízos para os segurados e para o país —
já que esses recursos participam dos investimentos estratégicos em
infraestrutura.
Os problemas de arrecadação do Sistema não derivam nem da idade nem do tempo
de contribuição, avalia Paim. Mas, sim, de fraudes, desvios dos recursos
para outras finalidades que não aquelas definidas na Constituição,
judicialização das dívidas de grandes empresas e aumento no número de
desempregados, consequência da crise econômica e da precarização do trabalho
promovida pela Reforma Trabalhista.
“Há 30 milhões de pessoas vivendo com enorme dificuldade”, diz Paim.
“Destas, 14 milhões estão desempregadas, 6 milhões em situação de desalento
(quando as pessoas desistem de procurar emprego) e mais 8 milhões a 9
milhões vivendo de trabalho precário, de bico. E esta ampla maioria não
contribui para a Previdência.”
TRABALHO PRECÁRIO
O chamado “trabalho intermitente”, autorizado pela Reforma Trabalhista,
produz situações paradoxais, em que o empregado chega a ter que pagar do seu
bolso ao empregador para cumprir o mínimo obrigatório de arrecadação,
destaca o senador. Pela nova modalidade, não há uma carga horária mínima
definida no contrato. O cidadão pode ser contratado para prestar uma, duas
horas por dia, por semana, ou qualquer outro intervalo. No final do mês,
caso esse total trabalhado não corresponda a um salário mínimo de
rendimento, o contribuinte terá que completar para o empregador o valor da
contribuição mínima.
“Se ele trabalhar 17 horas no mês, por exemplo, terá que devolver cerca de
R$ 4,00 ao patrão, segundo estimativa do Dieese, para que seja feito o
recolhimento à Previdência sobre o salário mínimo”, ilustra Paim. A esse
quadro, ele acrescenta o retorno de grande parte dos brasileiros à linha da
pobreza, sem emprego e sem poder de consumo, ou seja, sem girar a roda da
economia.
O vice-presidente de Assuntos da Seguridade Social da Anfip, Décio Bruno
Lopes, observa, ainda, que, a partir da Reforma Trabalhista, abonos,
gratificações, diárias de viagem deixam de integrar a contribuição
previdenciária. “O empregado recebe, mas o valor não é mais considerado na
base de cálculo, nem da contribuição nem da aposentadoria.”
A terceirização integral das atividades das empresas também vai reduzir a
arrecadação da Previdência. Segundo Décio Bruno, o empregado passa a ser
empresário, ou microempreendedor individual e, em vez de salário, terá
participação no lucro. Isso significa que, sobre esta remuneração, não será
recolhida a contribuição de 20% da empresa contratante, nem a do segurado,
que, por sua vez, varia de 8% a 11%. A distribuição de lucro não integra a
base de cálculo de contribuição, explica.
Na sua avaliação, os impactos na arrecadação provocados pela Reforma
Trabalhista e pela Lei da Terceirização serão ainda mais evidentes a partir
de 2019. “Quem continua no mercado, não foi demitido, ainda está sob as
regras anteriores. As consequências vão ocorrer com mais intensidade nos
novos contratos vigentes, quando os desempregados voltarem ao mercado de
trabalho. As relações trabalhistas serão regidas pela nova legislação. E aí
vamos verificar as consequências maiores na arrecadação previdenciária”. O
vice-presidente de Assuntos da Seguridade Social da Anfip responsabiliza as
políticas nesta área do governo Temer e do Congresso por ajudar a implodir a
arrecadação previdenciária, ao mesmo tempo em que as despesas continuam
crescendo.
OS NÚMEROS DO DÉFICIT
Segundo dados preliminares da Anfip, a Seguridade Social apresentou uma
necessidade de financiamento do Tesouro da ordem de R$ 57 bilhões em 2017,
resultado, principalmente, da desaceleração econômica e do grande número de
desempregados no país. Enquanto as receitas totais da Seguridade Social
alcançaram R$ 780,3 bilhões, incluindo Saúde, Assistência Social (LOAS e
Seguro Desemprego) e Previdência, as despesas bateram a casa dos R$ 837,2
bilhões.
É a segunda vez que o sistema registra déficit, desde 2005, quando teve
início a série comparativa. A primeira foi em 2016. O sistema registrou,
então, R$ 719,11 bilhões de receita, contra R$ 773,59 bilhões de despesas,
fechando com R$ 54 bilhões no vermelho, já em resposta à crise que
desacelerou a atividade econômica, e, com ela, a arrecadação.
Além da economia em recessão, com queda no faturamento das empresas e do
número alto de desempregados, Décio Bruno avalia que a isenção de
contribuição para as exportações agrícolas teve impacto importante no
déficit da Previdência. Embora muitos dos críticos do modelo apontem como
vilões os benefícios pagos aos trabalhadores rurais, ele afirma que há uma
“imunidade” para este setor da economia. “Foram as exportações agrícolas que
alavancaram o PIB, mas elas não contribuíram em nada para a Previdência”.
Junto com as desonerações de folha concedidas a alguns setores da economia,
o governo federal tem a prática regular de refinanciar as dívidas
previdenciárias das empresas. Os “Refis”, parcelamentos com redução de juros
e de multas, foram apontados, na CPI da Previdência, como outro escoadouro
de recursos do sistema de Seguridade.
No
ano passado, de acordo com números da Anfip, houve mais refinanciamentos do
que em 2016 e quase 100% de isenção para as multas, benefício estabelecido
pelas Medidas Provisórias 766/2016 e 783/2017. “As consequências desses
financiamentos vão acontecer, principalmente, em 2019”, avisa o especialista
da Anfip. “São valores consideráveis”.
Já em 2018, houve ainda um refinanciamento para a área rural, além da
redução de 2,4% para 1,7% da contribuição substitutiva da folha de empresa
para acidente de trabalho. “Como se não existisse uma necessidade enorme de
financiamento na área rural”, critica Lopes. Uma demanda, segundo os
levantamentos preliminares da Anfip, da ordem de R$ 100 bilhões no ano
passado. “Em vez de ser feito um trabalho para recuperar e otimizar a
receita, o governo tem ido exatamente na direção contrária, tomando decisões
que acabam por onerar ainda mais as contas da Previdência.”
Na área rural, os números iniciais da Anfip apontam para uma arrecadação
total, em 2017, de apenas R$ 9 bilhões para uma folha de pagamento de
benefícios da ordem de 120 bilhões. Esta receita fiscal foi 12, 5% maior à
obtida em 2016, que fechou em R$ 8 bilhões, correspondente a uma folha de
pagamento de benefícios de R$ 111 bilhões, 8% menor, em 2016. A PEC
substitutiva, última versão de reforma da Previdência que tramitou no
Congresso, não corrige essa distorção.
Com um novo governo eleito, o senador Paulo Paim acredita que tudo pode
acontecer. “O gabinete de transição poderá articular uma nova tentativa de
reforma da Previdência. Mas para isso terão que levantar a intervenção
federal no Rio de Janeiro [que impede votação de emendas constitucionais], e
colocar um Congresso em situação desconfortável para trabalhar sobre o
tema.” Se aprovarem uma proposta que reduza benefícios, dificulte o acesso à
aposentadoria (estabelecendo idade mínima e maior tempo de contribuição) ou
quebre o tripé do modelo solidário de Seguridade Social, mantido por Estado,
empresas e trabalhadores, para financiar saúde, previdência e assistência
social, o senador acredita que estarão condenando o futuro dos trabalhadores
brasileiros.
PREVIDÊNCIA COMPLEMENTAR
NOVO MERCADO PARA OS BANCOS
A Reforma da Previdência (PEC 287), elaborada pelo governo
Michel Temer e que poderá voltar a plenário, permitirá a exploração pelo
setor privado da previdência complementar dos servidores públicos, adverte o
presidente da Anfip, Floriano de Sá Neto. O parágrafo 15A do artigo 40 da
proposta, diz ele, transforma em previdência aberta o atual regime fechado
que atende aos servidores por meio da Fundação de Previdência Complementar
do Servidor Público da União (Funpresp).
“A iniciativa privada é a principal interessada. Trata-se de uma mudança
substancial no modelo. A Funpresp é fechada, mas a previdência complementar
aberta permite a competição e entrega este patrimônio aos bancos.”
São grandes as diferenças de gestão entre uma previdência complementar
fechada, e as abertas, oferecidas pelas instituições financeiras privadas. A
Funpresp não tem fins lucrativos e conta com uma diretoria colegiada,
indicada pelo governo federal. Funciona com regras específicas que permitem
a formação de poupança de longo prazo, destinada a financiar grandes
investimentos em infraestrutura, de interesse do desenvolvimento nacional,
em operações que os bancos privados em geral não oferecem. As atividades são
controladas e fiscalizadas pelos Conselhos de Administração e Fiscal, que
têm participação, embora minoritária, dos próprios segurados. “Somos
seguradores, beneficiários e temos participação na administração. De certa
forma, somos os donos. O dono é o participante.”
Já a previdência aberta é administrada diretamente pelos bancos, que têm o
lucro como objetivo, compara Floriano. “O contribuinte não pode fazer a
fiscalização direta da gestão e das definições de investimentos. É um mero
investidor.” O que o parágrafo 15A do artigo 40 da PEC 287 faz, explica ele,
é abrir uma brecha no sistema, permitindo que haja outros fundos. “O
Ministério da Fazenda, por exemplo, pode resolver fazer uma licitação para
uma previdência dos auditores fiscais, contratando o banco que ofereça o
menor preço. É contraditório, porque envolve finalidades muito diferentes. E
um retrocesso: vamos perder o controle sobre os nossos aportes.”
Para o presidente do Sinal, Jordan Pereira, neste cenário, uma opção seria
garantir que se pudesse atribuir a governança dos recursos para os fundos de
pensão dos diferentes segmentos de servidores, sob o guarda-chuva da
Funpresp. “Se vou passar a gestão para um banco privado de grande porte, há
um tipo de controle. Já no caso de um fundo municipal ou estadual, se essa
transferência for feita para instituições de pequeno porte, com controles
menores, há o risco de que investimentos temerários causem perdas nos
recursos. Por outro lado, por exemplo, no Banco Central, se conseguirmos
fazer com que o Centrus (fundo de pensão dos funcionários), administre os
recursos, teremos uma governança maior até que na Funpresp.” Esta
possibilidade, contudo, precisaria estar explícita no projeto.
A Reforma da Previdência dos servidores já foi feita em 2003 (PEC 41) e
regulamentada em 2013. Atualmente, qualquer servidor que ingressa no sistema
não tem mais integralidade nem paridade. “No entendimento da Anfip, a
reforma para o servidor já está em pleno vigor. Todas as projeções indicam
que a diferença entre o que o governo arrecada e o que ele paga está sob
controle, representando um valor pequeno em termos de PIB. Portanto,
acreditamos que não é necessária reforma para servidores públicos”, diz o
presidente da entidade.
Pelas regras vigentes, o servidor se aposenta com teto igual ao do Regime
Geral — R$ 5.645,80. Se quiser receber um benefício superior, precisará
complementá-lo, com opção de aderir à Fundação de Previdência Complementar
do Servidor Público da União (Funpresp). Neste caso, o resultado dependerá
da contribuição definida, após 20 ou mais anos de participação.
METODOLOGIA INTERESSADA
Os dados do governo federal
apontam um déficit para a Seguridade Social de R$ 292,4 bilhões
em 2017, 13% maior do que no ano anterior. Os números são bem
superiores aos do déficit de R$ 57 bilhões, obtidos no
levantamento preliminar da Anfip. Segundo o vice-presidente de
Assuntos da Seguridade Social da Anfip, Décio Bruno Lopes, há
uma distorção metodológica nas contas oficiais. E explica:
“O governo soma todas as despesas previdenciárias ( incluindo as
dos benefícios dos militares e demais servidores públicos), as
despesas totais do Regime Próprio, e também as do Regime Geral.
Só que quando se considera a contribuição dos servidores ativos
e aposentados, ela não é incorporada no cálculo geral do
governo. Não achamos essa metodologia correta. Se a Previdência
faz parte da Seguridade Social, é preciso confrontar receitas
gerais com as despesas gerais do sistema.”
A análise da Anfip se baseia no financiamento da Seguridade
Social com as arrecadações da folha de pagamento, sobre
faturamento, lucro, importação, recolhidas pelas empresas, e nas
contribuições do segurado (descontadas do salário), além das
receitas de concursos de prognósticos (loterias). Já os
benefícios dos servidores, segundo o artigo 40 da Constituição,
são responsabilidade do orçamento da União: 22% de participação
do governo e 11%, do servidor, e estes não entram no cálculo.
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A conta maior para os mais ricos
Ideia é promover justiça fiscal, reduzir desigualdade
e garantir recursos para investimentos públicos.
É
consenso entre amplos setores da sociedade que o caráter regressivo do
sistema tributário brasileiro só estimula a distribuição injusta da renda,
aumentando significativamente a desigualdade social. Os números são claros:
a alíquota efetiva do Imposto de Renda, levando-se em conta rendimentos
tributáveis e deduções, parte do patamar de 7,5% e vai subindo até chegar a
algo entre 12% ou 20%, conforme o número de dependentes, pensão alimentícia
ou outras especificidades, na faixa de 40 salários mínimos (R$ 38 mil).
Neste ponto, a carga tributária começa a cair, podendo despencar a 2% para o
seleto grupo de cerca de 29 mil contribuintes que ganham acima de 320
salários por mês, ou R$ 305 mil. A partir daí, quanto mais o cidadão ganha,
menos paga imposto, explica Charles Alcântara, presidente da Federação
Nacional do Fisco Estadual e Distrital (Fenafisco).
Atacar essa lógica regressiva, promover justiça tributária, reduzir a
desigualdade e assegurar recursos para investimentos públicos são alguns dos
objetivos da Proposta Tributária Solidária. Desenvolvido pela Fenafisco e
pela Associação Nacional dos Auditores da Receita Federal (Anfip), o
documento contou com o apoio do Conselho Federal de Economia (Cofecon), do
Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese),
da Fundação Friedrich Ebert Stiftung Brasil (FES), do Instituto de Estudos
Socioeconômicos (Inesc), do Instituto de Justiça Fiscal (IJF) e da Oxfam
Brasil.
As diretrizes fundamentais para o projeto foram consolidadas no livro “A
Reforma Tributária Necessária: Diagnósticos e Premissas”, elaborado por mais
de 40 especialistas, e lançado em junho (ver Por Sinal 57). Com base neste
estudo de mais de 800 páginas, a Anfip e a Fenafisco editaram, em 17 de
outubro, um documento-síntese chamado “A Reforma Tributária Necessária —
Justiça fiscal é possível: subsídios para o debate democrático sobre o novo
desenho da tributação brasileira”, com medidas concretas para efetivar a
mudança do sistema tributário brasileiro.
Este novo desenho tributário prevê, por exemplo, quase duplicar as receitas
da tributação sobre a renda, o patrimônio e as transações financeiras — de
R$ 472 bilhões para R$ 830 bilhões, um incremento de R$ 357 bilhões. Em
contrapartida, sugere reduzir a tributação sobre bens e serviços e sobre a
folha de pagamentos em R$ 310 bilhões. Essas receitas podem cair 21,5%, de
R$ 1,439 trilhão para R$ 1,129 trilhão.
QUEM PAGA A CONTA
“O Imposto de Renda, hoje, é o imposto da renda do salário e quem o paga são
os trabalhadores da iniciativa privada e os servidores públicos, enquanto
aqueles que têm outros rendimentos não pagam”, critica Floriano Sá Neto,
presidente da Anfip. Ele observa que os impostos sobre herança no Brasil, de
competência estadual, oscilam de 4% a 8%, com a maior parte dos estados
cobrando na faixa de 4%. Nos Estados Unidos, diz, a tributação sobre herança
chega a 40%. A alíquota efetiva do IR despenca conforme os valores de
rendimentos sobem porque, embora nominalmente ela aumente, a parcela
dedutível também é progressiva, permitindo descontos cada vez maiores no
total a pagar. Estudos da Receita Federal consultados pelas entidades
mostram que o imposto é progressivo até 40 salários mínimos. A partir deste
patamar, torna-se regressivo porque nas faixas altas — de 160 a 240 salários
mínimos — 70% dos rendimentos são identificados como operações de
distribuição de lucros ou dividendos, isentas de imposto.
A reforma defendida pelas entidades não implica aumento da carga tributária,
atualmente de 32,4% do PIB. Embora inferior à média dos países desenvolvidos
da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), de
34,1%, o patamar nacional é criticado pela insuficiência de retorno à
sociedade. O objetivo é o seu deslocamento: reduzir os impostos indiretos
sobre os produtos e serviços, que hoje respondem por cerca de 50% da
arrecadação total, e aumentar os impostos diretos sobre as rendas mais altas
(ver tabela ao lado).
A tributação indireta, que atinge todos os consumidores, ricos e pobres,
indistintamente, inclui contribuição do INSS, PIS, Cofins, encargos sobre a
folha de pagamento de salários, impostos que são diluídos nos preços das
mercadorias, e pouco percebidos pela população. Sobre o óleo diesel,
Floriano Sá Neto estima que a participação do imposto chegue a 40% e sobre
os demais combustíveis, pode alcançar 25% em alguns estados.
“Tornar o imposto mais progressivo por meio da tributação direta sobre os
ganhos de capital, a renda e o patrimônio ‘oculto’ dos mais ricos, seria a
meta a ser alcançada. Precisamente no tocante ao mais notório imposto direto
— o que incide sobre a renda das pessoas físicas — não há razão ética,
econômica ou jurídica capaz de justificar a manutenção de sua incidência
praticamente restrita às rendas provenientes do trabalho, ao passo que as
provenientes do capital sigam há mais de vinte anos a salvo de tributação,
como ocorre com a distribuição de lucros e dividendos”, chamam a atenção os
presidentes da Anfip e da Fenafisco, no texto de apresentação do documento
de diagnósticos e premissas.
NOVA TABELA DO IR
Para inverter essa relação, as medidas indicadas na proposta incluem uma
nova tabela de IR. Hoje, a alíquota máxima é de 27,5% para todos os que
ganham a partir de R$ 4.897,91. As entidades querem estender a isenção do
imposto para quem ganha até quatro salários mínimos (o teto é de dois
mínimos) e estabelecer novos patamares para rendimentos mais altos, na faixa
de 35% e 40%, que incidiriam sobre todas as rendas. Isto significaria passar
a contabilizar, na base de cálculo, também os lucros e dividendos, isentos
desde a Lei 9249/95, do governo Fernando Henrique Cardoso, e que, sozinhos,
gerariam receita adicional anual de R$ 80 bilhões. Grandes fortunas,
incluindo patrimônio imobiliário, também seriam tributadas com alíquotas em
torno de 0,5%, que poderiam proporcionar algo perto dos R$ 37 bilhões,
segundo a estimativa de Charles Alcântara, da Fenafisco.
“Se conseguirmos reduzir os impostos indiretos de cerca de 50% para 34%, por
exemplo, ampliando a tributação na renda, já teremos um sistema menos
regressivo”, diz Alcântara, lembrando que esta é uma diretriz
constitucional. “A Constituição Federal estabelece os critérios da
progressividade [maior imposto para quem pode pagar mais], generalidade
[sobre todas as rendas] e universalidade [para todas as pessoas].”
Neste sentido, o presidente da Fenafisco adianta que a Reforma Tributária
Solidária também recomenda enfrentar as renúncias fiscais, da ordem de
R$ 257 bilhões ao ano, promovendo a volta da tributação sobre produtos
primários e semielaborados, inclusive na agricultura, cujas vendas externas
são isentas de impostos. Segundo Alcântara, em 2017 a renúncia aumentou,
tendo correspondido a quase 1/4 das receitas da União. “Estamos vivendo uma
grave crise fiscal e não vamos arrecadar?”, questiona, apontando como
principais beneficiários dessa política grandes empresas e conglomerados,
com fortes lobbies no Congresso.
“Na exportação de commodities, por exemplo, o que arrecadamos do mundo rural
é muito pouco diante do que geramos de riqueza. Tudo o que é exportado é
isento. Consideramos insustentável manter a imunidade tributária nas
exportações de produtos primários. Ela é um sintoma de um país que não saiu
do colonialismo. Continua exportando para o mundo commodities e minério —
matéria prima —, e importando produtos de valor agregado”, diz. Um desenho
que, na sua avaliação, promove a desindustrialização do Brasil e gera
empregos fora do país.
A proposta também prevê um imposto ambiental, uma das premissas básicas do
projeto. A Europa já possui esse tipo de tributo, que responde por 6% da
arrecadação, com meta de chegar a 10% até 2020. No alvo do novo imposto
estão os agrotóxicos, atualmente isentos, o material plástico, os minérios e
outros produtos obtidos em atividades de grande impacto no meio ambiente,
como as chamadas externalidades nocivas.
FOCO NA JUSTIÇA FISCAL
O modelo solidário das entidades não deixa de lado a preocupação em
simplificar o sistema, objetivo prioritário de minuta de reforma tributária
do deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR), que vem sendo discutida na Câmara
Federal. E, a exemplo desta, pede a criação de um IVA — Imposto sobre Valor
Agregado, para concentrar e substituir os tributos cobrados sobre bens e
serviços. Diferentemente do projeto de Hauly, contudo, não pretende
extinguir as fontes de receita destinada à Seguridade Social e sua
prioridade não é a desburocratização, mas a justiça fiscal.
“Nossa premissa é o financiamento da proteção social. Também propomos um IVA,
mas a junção de nove espécies de impostos na proposta de Hauly não se
preocupa com as receitas que estão vinculadas à Seguridade Social. O nosso
modelo de proteção social não abre mão disso. Por isso é preciso que se crie
um mecanismo específico destinado ao orçamento da Seguridade, seja um
adicional no IR, ou um IGF (Imposto sobre Grandes Fortunas)”, explica.
Na opinião do presidente da Fenafisco, a Reforma Tributária Solidária
deveria anteceder a qualquer outra que um novo governo pretenda fazer,
inclusive a da Previdência. “Com base nela, vou saber o tamanho do Estado,
qual pacto vamos precisar fazer. Hoje, com a PEC dos Gastos, se a Receita
Federal se esmerar ao máximo, conseguir ser mais efetiva para arrecadar
mais, não vai adiantar nada, porque não posso gastar mais.” Com a
progressividade, Alcântara argumenta que ganharia todo o sistema produtivo
brasileiro. “Um modelo tributário moderno e desenvolvido melhora o ambiente
de negócios e permite aliviar o orçamento da maioria da população, para que
volte a consumir.”
A proposta da Reforma Tributária Solidária já foi debatida no Congresso e
com vários agentes econômicos que poderão apoiar a iniciativa nas suas bases
estaduais, entre eles o Conselho Nacional de Secretários de Fazenda (Consefaz).
A Fenafisco também conta com fiscais associados das três instâncias de poder
atuando em estados e municípios para avançar nas articulações políticas a
favor do projeto.
Os 10 mandamentos da Oxfam
A reforma tributária é o segundo ponto das “Dez Ações Urgentes
Contra as Desigualdades no Brasil”, propostas para o novo
governo pela Oxfam — confederação internacional que reúne 20
organizações e mais de três mil parceiros, em 90 países, na
busca de soluções para o problema da pobreza, desigualdade e da
injustiça, por meio de campanhas, programas de desenvolvimento e
ações emergenciais. Para Rafael Georges, coordenador de
campanhas da Oxfam Brasil, é necessário rever o desequilíbrio
atual, que faz com que os pobres arquem com maior peso — 32% da
carga tributária —, contra 21% sobre os mais ricos, de acordo
com dados de 2015 do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).
“Em todos os países com níveis de desigualdade baixos, a
progressividade da tributação é alta, como no caso das grandes
economias desenvolvidas da Europa e América do Norte. Ela
funciona para financiar o Estado de maneira sustentável e fazer
os investimentos em saúde, tecnologia, educação pública de
qualidade, os meios pelos quais uma nação acaba se
desenvolvendo. E para que o desenvolvimento não seja apropriado
por um grupo pequeno, como acontece no Brasil e em outros países
latino-americanos.”
Em 2015, diz o documento-síntese da Reforma Tributária
Solidária, os 10% mais ricos da população se apropriavam de
55,3% da renda nacional e a participação da renda dos 50% mais
pobres era de apenas 12,3%. “Um projeto de reforma tributária
para o desenvolvimento deve levar em conta que, nos últimos 60
anos, o Brasil nunca contou com políticas nacionais de habitação
popular, saneamento básico e mobilidade urbana que fossem
portadoras de recursos financeiros e institucionais compatíveis
com os problemas estruturais agravados desde meados do século
passado em função da acelerada urbanização”, escrevem os
autores. “Esse cenário sugere que, para que se enfrentem as
múltiplas faces das desigualdades sociais brasileiras, é
necessário que a reforma do sistema tributário nacional seja
pensada na perspectiva do desenvolvimento nacional,
espelhando-se na experiência dos países capitalistas
desenvolvidos que são relativamente menos desiguais que o
Brasil.”
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A PARTILHA TRIBUTÁRIA EM NÚMEROS
O
documento-síntese “A Reforma Tributária Necessária - Justiça fiscal é
possível: subsídios para o debate democrático sobre o novo desenho da
tributação brasileira”, lançado em 17 de outubro, detalha uma nova estrutura
tributária, menos regressiva, indicando a criação, substituição e extinção
de tributos para um modelo mais progressivo, capaz de reduzir a desigualdade
no país. O documento também apresenta cenários e simulações relativas à
arrecadação e à distribuição de renda. Alguns pontos em destaque:
O
caráter regressivo do modelo nacional é visível na reduzida participação
relativa do imposto sobre a renda na arrecadação total (18,3%), em relação à
média dos países da OCDE (34,1%). A proposta quer elevar essa participação a
30,69%. Da mesma forma, a participação da tributação sobre patrimônio na
receita fiscal passaria dos atuais 4,4% para 8,03%, fatia superior à média
da OCDE, de 5,5%.
Na outra ponta, a participação relativa dos impostos sobre o consumo no
Brasil, de 49,7%, cairia para 36,76%, descendo a níveis equivalentes aos da
OCDE, cuja média é de 32,4%. Seu peso no PIB baixaria de 16,23% para 12,93%,
pouco acima do padrão da OCDE, de 10,9% do PIB.
renúncia e evasão fiscal, recursos que são transferidos para as camadas mais
abastadas e, deste modo, aprofundam o caráter regressivo da tributação,
totalizam cerca de 12,8% do PIB, patamar próximo do montante de receitas
obtidas pela tributação de bens e serviços (16,23% do PIB). Juntas, as
isenções fiscais concedidas pelo governo federal e a sonegação representam
cerca de R$ 900 bilhões anuais, 64% do total da Receita Tributária
arrecadada pela União, de R$ 1,4 trilhão, e quase a metade do total da
Receita Tributária arrecadada pelos três níveis de governo — R$ 1,9 trilhão.
Por isso, o documento propõe rigor na revisão das renúncias e no combate à
sonegação, para fazer surgir novas fontes de financiamento.
A simplificação da tributação é um objetivo, mas assegurando a preservação
do Estado Social e ampliando a progressividade. O Imposto sobre o Valor
Adicionado (IVA) substituiria o atual quadro composto por 27 leis estaduais
de regulação do ICMS e 5.570 leis municipais do ISS. Mas, em vez da prática
atual de isenção aplicável aos bens de primeira necessidade (como alimentos
e medicamentos), para reduzir a tributação sobre o consumo das camadas de
menor renda, a proposta seria adotar uma espécie de “Renda Básica
Tributária”, que consiste na devolução do imposto aos consumidores
cadastrados nos programas sociais do governo.
Para reduzir a regressividade, seria feito um corte de 30% na contribuição
patronal da folha de pagamentos e reduzida a tributação de bens e serviços.
Essas medidas trariam perdas aparentes de receita da Seguridade Social
estimadas em R$ 306,2 bilhões, como resultado da extinção da Contribuição
Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) e Lucro Presumido, da Contribuição para
o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), da Contribuição ao Programa
de Integração Social (PIS), e da redução no valor de Outras Contribuições
Previdenciárias.
Novos impostos, mais progressivos, e o aperfeiçoamento de outros, iriam
compensar a extinção destas fontes de receita para a Seguridade Social,
proporcionando um acréscimo de arrecadação de R$ 223,8 bilhões: Contribuição
Social sobre Altas Rendas da Pessoa Física (CSPF); modulação da Contribuição
Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) — Lucro Real; Contribuição Social sobre
o Valor Adicionado (CSVA); Contribuição Social sobre Movimentação Financeira
(CSMF). Seria ainda necessário revogar a Desvinculação das Receitas da União
(DRU), para recuperar esses recursos — estimados em R$ 85,7 bilhões — em
favor do Orçamento da Seguridade Social, que no balanço geral da reforma,
acabaria ligeiramente favorecido, passando dos atuais R$ 561,2 bilhões
(valor líquido atual) para R$ 564,5 bilhões.
A proposta de Reforma Tributária promete melhorar significativamente a
distribuição de renda no Brasil. Não só considerando-se a renda disponível,
quanto a renda após os impostos indiretos. São esperadas melhorias nos
índices do Coeficiente de Gini — um número entre 0 e 1, onde 0 0 corresponde
à completa igualdade e 1 à completa desigualdade (quando uma pessoa recebe
todo o rendimento e as demais nada recebem). Na renda disponível, o índice
de Gini cairia de 0,578 (situação atual) para 0,552 (proposta), atingindo
padrão similar ao da OCDE para os efeitos da tributação direta. Na renda
após a tributação indireta, passa de 0,612 (atual) para 0,571 (proposta),
obtendo um ganho distributivo de 6,6%.
ATAQUE AOS PRIVILÉGIOS: UM TIRO NO PÉ
Mito do Estado inchado e ineficiente ameaça políticas de bem-estar social.
Quem paga a conta é a população mais pobre.
Com a iminência de um novo governo, de
perfil liberal, as discussões sobre as futuras políticas públicas para o
país precisarão enfrentar a desconstrução de um mito, que ameaça o bem-estar
social do conjunto da sociedade. Trata-se da ideia de que a máquina pública
está inchada, há funcionários demais nas três esferas do governo (federal,
estadual e municipal), e é preciso enxugá-la, sem piedade, combatendo
privilégios e desperdícios. O futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, já
anunciou inúmeras vezes que entre as principais ações para resolver a crise
fiscal estão, em ordem hierárquica, a Reforma da Previdência, as
privatizações e a Reforma do Estado.
Antes mesmo das eleições presidenciais, o Sindicato Nacional dos
Funcionários do Banco Central (Sinal) divulgou nota denunciando os
interesses que movem a campanha de desmoralização do servidor público: “Fica
cada vez mais evidente que a declarada campanha governamental contra o
servidor público, repercutida com estardalhaço pelos grandes órgãos da
imprensa, imputando privilégios onde enxergamos direitos, rasgando a
Constituição Federal ao suspender reajustes salariais legalmente concedidos
e aumentar a contribuição previdenciária, que passa a ser arbitrariamente
progressiva, sem qualquer consideração de caráter técnico a ampará-la, é
fruto de uma conspiração, de modo a enfraquecer o Estado brasileiro e os
serviços públicos que atendem diretamente o cidadão.”
A mesma preocupação foi manifestada pelo secretário-executivo da Afipea
Sindical (Associação e Sindicato dos Funcionários do Ipea), Roberto
Gonzalez, no final de setembro, em apresentação no Fórum Nacional Permanente
de Carreiras Típicas de Estado (Fonacate). “Nós não podemos rodear esta
questão — isto não é verdade e isto precisa ser dito”, alertou. Os ataques
aos funcionários públicos camuflam, ressaltou, programas econômicos que
pretendem extinguir ou tornar cada vez mais precários os próprios serviços
oferecidos pelo Estado à sociedade. Os mesmos que, numa contradição
aparente, a população gostaria que fossem aperfeiçoados e expandidos.
A expressão “inchaço da máquina”, martelada com insistência por jornalistas
econômicos e políticos, parece sugerir que o funcionalismo se resume a
gabinetes em Brasília ou a empregados em funções desnecessárias. Desse modo,
as pessoas não percebem que estão tratando, também, de professores ou de
médicos, cuja expansão de quadros é frequentemente prometida pelos
governantes aos eleitores. Para rebater dados distorcidos sobre a
administração estatal, como aqueles apresentados no relatório “Um ajuste
justo, análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil”,
encomendado pelo governo federal ao Banco Mundial, o Fonacate e a Afipea
lançaram, em abril, o estudo “Que serviços públicos queremos?” (ver
reportagem “O desmonte do serviço público”, em Por Sinal nº 57, de junho de
2018).
“Quando falamos no ‘serviço público que queremos’, estamos falando de mais
pessoas nos serviços prestados à população que estão assegurados pela
Constituição no seu artigo 7”, explica Gonzalez. Ele lembra que o Brasil é o
único país na América Latina que oferece sistema de saúde universal, com o
SUS, e previdência praticamente para todos. Mesmo assim, tem
proporcionalmente menos funcionários públicos do que os Estados Unidos, onde
a aposentadoria está disponível apenas em planos privados e a saúde gratuita
é restrita a idosos e a cidadãos abaixo da linha da pobreza.
INTERESSES PRIVADOS
No
Brasil, os funcionários públicos são cerca de 12 milhões. Destes, um terço
são militares. O funcionalismo brasileiro representa 12% das pessoas
ocupadas no país, patamar inferior ao da administração americana, de 16,5%,
aí excluídos os militares, e aos 22% da média registrada nos países da
Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), incluindo
todas as esferas, no período entre 2009 e 2013.
O segredo não revelado das propostas de Estado Mínimo é que ele não exclui
efetivamente o Estado, mas seleciona onde o poder público vai atuar,
privilegiando, quase sempre, interesses de grupos econômicos privados. Nos
Estados Unidos, por exemplo, há uma tendência em reduzir o número de
funcionários que trabalham com cuidados para a população, e em aumentar o
aparato repressivo, com mais policiais. Um movimento que também já se
verifica no Brasil, na conjunção que reúne as políticas de austeridade com o
ataque ao serviço público.
“O inchaço é um mito, não podemos aceitar”, diz Gonzalez. “Caso contrário,
estaremos aceitando as políticas de cortes e precarização que vêm na
sequência.” Estado mínimo é, quase sempre, sinônimo de perda de qualidade de
vida para a população. Os países com mais servidores públicos têm os
melhores Índices de Desenvolvimento Humano. Na Dinamarca, por exemplo, o
funcionalismo público representa 32,9% da força de trabalho.
Neste sentido, o discurso que prega o encolhimento do Estado brasileiro está
na contramão da realidade do país, onde as demandas sociais devem aumentar
significativamente nos próximos anos. A Reforma Trabalhista — que introduziu
regimes precários de contratação, como o trabalho intermitente — e a
transição demográfica, com o envelhecimento gradativo da população, são
alguns dos fatores que vão exigir a oferta de mais e melhores serviços
públicos. “Todo mundo lembra da transição demográfica na hora de falar da
Reforma da Previdência. Pouca gente lembra que uma população envelhecida
requer serviços, não apenas desconto em farmácias, mas cuidados, que são
intensivos em trabalho”, pondera Gonzalez.
Outro aspecto importante é que o país conta, hoje, com 40 milhões de
trabalhadores sem carteira assinada, de acordo com dados da Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), o equivalente a dizer que 45% de sua
mão-de-obra está ocupada em atividades informais. Trata-se de um recorde
histórico. A informalidade, na prática, representa remunerações inferiores e
instáveis e uma necessidade maior de serviços gratuitos, especialmente nas
áreas da educação e da saúde.
“A realidade brasileira atual do mercado de trabalho fará com que as
demandas sociais cresçam muito nos próximos anos”, alerta o supervisor
técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos
Socioeconômicos (Dieese) em Brasília, Max Leno de Almeida.
“As formas de contratação, de admissões e desligamentos, os vínculos
existentes ou não, tudo isso vai, na prática, reduzir a renda das famílias,
que precisarão da presença do Estado na vida delas”. Os planos de saúde, por
exemplo, que tornaram-se muito caros diante da fragilização dos orçamentos,
devem subir mais ainda, prevê Max Leno. E as pessoas vão ter que procurar o
SUS.
DIREITOS COMPROMETIDOS
A discussão fundamental por trás da relação entre o número de servidores
públicos que o país precisa ter na ativa e o aumento das demandas sociais
envolve a maneira como o Estado se faz — ou se fará — presente na vida das
pessoas.
As várias reformas previdenciárias têm intensificado as aposentadorias na
categoria, onde também a idade média é elevada, o que significa que, sem
reposição, o quadro de servidores experimenta uma tendência natural de
encolhimento. É o caso da reforma específica para os servidores, de 2003,
que entre outras medidas, acabou com o direito de o servidor se aposentar
com o último salário da carreira (a chamada integralidade) e com reajustes
iguais aos da ativa (paridade), e previu ainda a limitação do benefício ao
teto do INSS, desde que fosse criado um fundo de Previdência complementar
para que os servidores tivessem a chance de incrementar a aposentadoria, que
veio a ser regulamentado em 2013.
Com isso, a estrutura que já tem ficado comprometida nos últimos anos pode
se tornar ainda menos eficaz. Especialmente frente às restrições impostas
pela Emenda Constitucional 95 (Teto dos Gastos), que limita a variação das
despesas primárias do governo federal ao índice da inflação do ano anterior.
Mesmo sem a EC 95, os ingressos por concurso já vêm caindo: 33,7 mil, em
2014; 21,6 mil em 2015; e 20,8 mil em 2016.
A acusação de que o funcionalismo público recebe supersalários é outro
argumento fantasioso e recorrente utilizado em larga escala pela mídia para
indispor a sociedade com os servidores. Estudo da Afipea, com base na
Relação Anual de Informações Sociais (Rais) 2015, do Ministério do Trabalho,
mostrou que uma parcela ínfima no conjunto de servidores extrapola o teto
constitucional — somando salários e abonos diversos. Considerando as
diversas esferas, estes casos fora da curva representam 2,93% do Legislativo
Federal, área de maior ocorrência, e apenas 0,5% no Executivo Federal (ver
tabela ao lado).
Os raros casos de salários acima do teto legal não se encontram
absolutamente na prestação direta de serviços públicos à população, como
querem fazer crer os economistas neoliberais, entre eles o futuro ministro
da Economia, Paulo Guedes. Não beneficiam, por exemplo, os profissionais que
atuam em postos de saúde, nem professores estaduais e municipais, que são os
grandes contingentes de servidores públicos. Nos estados e municípios, o
estudo revelou que a média salarial é até inferior à do setor privado. “É
criminoso, para não dizer outra coisa, apontar o dedo e dizer que este
servidor é responsável pelo aumento do gasto público”, critica González.
Dois aspectos importantes caracterizam as diferenças entre salários do setor
público e privado: a disparidade dentro do próprio conjunto do funcionalismo
— a “dispersão salarial” —, e o perfil próprio dos profissionais, construído
a partir dos processos de ingresso, por meio de concursos. A dispersão
salarial acontece, na avaliação de Gonzalez, porque algumas áreas têm maior
poder de pressão e, com isso, negociações mais favoráveis.
Segundo estudo do Ministério do Planejamento, um funcionário da
Agência Brasileira de Inteligência (Abin), por exemplo, recebe entre R$ 16,2
mil e R$ 24,1 mil por mês, no topo da pirâmide, onde estão 23% do
funcionalismo que ganha acima de R$ 12,5 mil. Na outra ponta, professores
universitários, com carga de 20 horas semanais, recebem R$ 2,2 mil mensais
em início da carreira. Os servidores que ganham até R$ 5,5 mil são 30% do
funcionalismo, sendo que muitos destes recebem vencimentos abaixo de R$ 1,4
mil. E somente 18% têm remuneração entre R$ 9,5 mil e R$ 12,5 mil.
DESPESAS EQUILIBRADAS
Sob qualquer parâmetro de análise, os gastos com a folha de pagamento do
setor público estão longe de serem os culpados pelos problemas das contas
nacionais. Representaram 4,6% do PIB em 2017, quando a produção interna do
país cresceu apenas 1%. Já se a análise for feita levando em conta a Lei de
Responsabilidade Fiscal (LRF), o equilíbrio neste item também é evidente. A
LRF estabelece limite de 50% da receita corrente líquida para as despesas
com pessoal — que representaram apenas 42% em 2017. Lembrando que a receita
corrente é composta pela arrecadação de tributos, prejudicada pelo
desaquecimento da economia.
Sob a ótica internacional, o supervisor técnico do Dieese destaca que as
despesas totais estão próximas da média da OCDE. No Brasil, cresceram, em
média, 10,5% entre 2010 e 2015, para 10% nos outros países. Mesmo este
crescimento foi provocado, em grande medida, por determinações do Tribunal
de Contas da União, na tentativa de recompor o desmonte promovido no governo
Collor, quando 110 mil servidores foram demitidos, e reverter as
terceirizações massivas feitas no governo de FHC.
Max Leno chama a atenção para os impactos do encolhimento da estrutura:
“Ficam algumas preocupações sobre a maneira como as despesas de pessoal
serão tratadas daqui para frente, mesmo à luz do fato de que elas não são o
vilão das contas públicas. Seja na avaliação global, comparando com a
produção, seja nos aspectos jurídicos da responsabilidade fiscal, na
comparação das despesas ou com padrões internacionais, temos um retrato
bastante abrangente de equilíbrio.”
O orçamento público, instrumento no qual essa abordagem política é expressa,
tem, neste sentido, um papel crucial que nem sempre é percebido pela
sociedade. “Ele é de extrema relevância do ponto de vista dos anseios dos
governantes, mas também da sociedade, que tem agido pouco levando em
consideração o orçamento como elemento político, para dentro do qual se deve
extravasar o conjunto das demandas sociais.”
O Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) para 2019 já foi encaminhado ao
Congresso pelo governo Temer. Em abril do ano que vem, a Lei de Diretrizes
Orçamentárias (LDO) precisaria então estar votada com todos esses elementos
definidos para as políticas públicas que virão. Os servidores e a sociedade,
que pretendem contar com serviços universais e públicos de qualidade, devem
estar atentos.